24 de set. de 2011

A NOITE

A noite é essa escuridão tão envolvente
que parece um exercício de morte:
assim vai desaparecendo tudo,
assim desaparecemos dos outros
e de nós.

Apenas respiramos.
Podem cortar esse último fio
— e o tear que somos se imobiliza.

A noite esconde a terra, o céu a casa,
os vossos rostos.

Estou novamente dentro de uma entranha?
Humana? Cósmica? Em que entranha me aninho,
onde se enrola o novelo da minha memória,
em que cofre, na escuridão?

Nossas asas estão docemente fechadas
e nossos olhos moram no pensamento.

Cada um tem a sua noite.
Cada coisa.
E tudo está na sua noite,
enquanto é noite.

O dia é um bailarino com sinos e espelhos

Interrompemos a treva onde aprendíamos lembranças;
e somos de repente uns falsos acordados.

1960

Cecília Meireles.
In: ‘O Estudante Empírico’ p. 9/10

23 de set. de 2011

...

Ciência, amor, sabedoria,
- tudo jaz muito longe, sempre...
(Imensamente fora do nosso alcance!)
...
Desmancha-se o átomo,
domina-se a lágrima,
vence-se o abismo:
- cai-se, porém, logo de bruços e de olhos fechados,
e é-se um pequeno segredo
sobre um grande segredo.

Tristes ainda seremos por muito tempo,
embora de uma nobre tristeza,
nós, os que o sol e a lua
todos os dias encontram,
no espelho do silêncio refletidos,
neste longo exercício de alma.

1955

Cecília Meireles
In "Poesia Completa",
Ed. Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1993, pag 1083

'Elegia a uma pequena borboleta'

Como chegavas do casulo,
— inacabada seda viva —
tuas antenas — fios soltos
da trama de que eras tecida,
e teus olhos, dois grãos da noite
de onde o teu mistério surgia,

como caíste sobre o mundo
inábil, na manhã tão clara,
sem mãe, sem guia, sem conselho,
e rolavas por uma escada
como papel, penugem, poeira,
com mais sonho e silêncio que asas,

minha mão tosca te agarrou
com uma dura, inocente culpa,
e é cinza de lua teu corpo,
meus dedos, sua sepultura.
Já desfeita e ainda palpitante,
expiras sem noção nenhuma.

Ó bordado do véu do dia,
transparente anêmona aérea!
não leves meu rosto contigo:
leva o pranto que te celebra,
no olho precário em que te acabas,
meu remorso ajoelhado leva!

Choro a tua forma violada,
miraculosa, alva, divina,
criatura de pólen, de aragem,
diáfana pétala da vida!
Choro ter pesado em teu corpo
que no estame não pesaria.

Choro esta humana insuficiência:
— a confusão dos nossos olhos
— o selvagem peso do gesto,
— cegueira — ignorância — remotos
instintos súbitos — violências
que o sonho e a graça prostram mortos

Pudesse a etéreos paraísos
ascender teu leve fantasma,
e meu coração penitente
ser a rosa desabrochada
para servir-te mel e aroma,
por toda a eternidade escrava!

E as lágrimas que por ti choro
fossem o orvalho desses campos,
— os espelhos que refletissem
— vôo e silêncio — os teus encantos,
com a ternura humilde e o remorso
dos meus desacertos humanos!

De: MEIRELES, Cecília. “Retrato natural”. In: Obra poética. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1967.
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