30 de mai. de 2012

'Para os livros, cujo perfume'





Para os livros, cujo perfume
de campo e verniz fascinava
meus olhos e meu pensamento,
não tenho tempo.


Para a flor, o linho, a ramagem,
a cor, que me arrastavam como
por um bosque múrmuro e denso,
não tenho tempo.


Nem para o mar, nem para as nuvens,
nem para a estrela que adorava
não tenho, não tenho, não tenho
não tenho tempo.


Canta o pássaro inútil ritmo,
os homens passam como sombras,
e o mundo é um largo e doido vento.
Não tenho tempo.


Longe, sozinha, arrebatada,
entro no circulo secreto
e a mim mesma não me pertenço.
Não tenho tempo.


Oh, tantas coisas, tantas coisas
que a alma servira com delicia...
(São nebulosas de silencio...)
Não tenho tempo.


Lagrimas detidas – meus olhos.
Sofro, porem já não batalho
entre saudade e esquecimento.
Não tenho tempo.


Aonde me levam? Que destino
governa a delirante vida?
Nem hei de morrer como penso.
Não tenho tempo.


Tão longe esforço, e tão penoso
- e agora fechado o horizonte.
Ó vida, inefável momento,
- não tenho tempo...



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)

'Manhã de chuva na infância'


Ao longo do muro, as campânulas escorrem,
gelatinosas,
ainda coroadas,
ainda cheirosas,
e já mortas.


Eu sou a menina que vai para a escola
com o seu casaquinho vermelho,
e os seus livros forrados de papel azul.


A chuva continua a bater nas flores,
a avivar as cores dos muros,
a gorgolejar nas calhas,
a correr para os negros bueiros.


Eu sou a menina que vai para a escola
feliz, com os cabelos molhados
e o rosto frio.


A chuva é uma alegria, com suas agulhas de vidro
voando por todos os lados.
A chuva cheira a jasmim e a flor “boa-noite!”


Eu sou a menina que de repente fica triste,
porque ao longo do muro as campânulas escorrem,
gelatinosas,


cor de coral, cor de marfim,
perfumadas ainda,
e já mortas.

1957



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)

'Discurso aos infiéis'


Por que chorar de saudade,
se me resta o longo mar sonoro e vário,
a flor perfeita, a estrela certa,
e a canção que o pássaro vai bordando no vento?


Por que chorar de saudade,
se me resta um jardim de palavras,
e os bosques do eco
e estes caminhos da memória me pertencem?


Por que chorar pelo que me levais,
se é maior o que fica:
se a sombra em que vos recordo é mais bela que o vosso vulto,
se em vós morreis e em mim ressuscitais?


É melhor não ficar jamais com quem nos ama.
O amor é um compromisso de grandeza,
o amor é uma vigília incansável
e aparentemente vã.


Passai, parti, deixai-me, vós que, no entanto,
parecestes um momento mais adoráveis
que o mar, que a flor, que a estrela,
que a canção que um frágil pássaro vai bordando no vento...


Éreis o vento, apenas.

1957



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)

''Paisagem e silencio''


O hirto cipreste com pássaros escondidos na rama crespa.
A rendada folhagem das sucessivas acácias.
Folhas coloridas, agaves, roseiras descendo entrelaçadas
A encosta pedregosa.


Para onde foram as borboletas que aqui dançaram?


Os telhados muito velhos, ainda com clarabóias.
Escuros vãos de janelas, tão longe que não se avista ninguém.


Coníferas, palmeiras. Tudo imóvel,
a não ser uma fumaça que sobe azuladamente, entre as arvores.


O flanco da montanha, com seus verdes turvos,
com sua pedra riscada por sulcos de água.


Nuvens tempestuosas, grossas nuvens aquosas
crescendo insensivelmente, cinzentas, pardas, lívidas.
São conchas monumentais, balaustradas, zimbórios frágeis.
Montanhas aéreas de opalas foscas.


De repente, duas pequenas asas fugitivas:
- o pombo branco.
Atrás delas, igual a elas, assim clara, alta e rápida,
uma voz de criança a correr.


Depois, entre o olhar e a tarde,
prossegue o silencio.

Abril, 1954



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)

1 de mai. de 2012

"Dois"



Abraçava-me à noite nítida,
à alta, à vasta noite estrangeira,
e aos seus ouvidos sucessivos murmurava:
“Não quero mais dormir, nunca mais, noite, esparsas
nuvens de estrelas sobre as planícies detidas,
sobre sinuosos canais, balouçantes e frios,
sobre os parques inermes, onde a bruma e as folhas ruivas
sentem chegar o outono e, reunidas, esperam
sua lei, sua sorte, como as pobres figuras humanas.”


E aos seus ouvidos sucessivos murmurava:
“Não quero mais dormir, nunca mais, quero sempre
mais tempo para os meus olhos, - vida, areia, amor profundo... –
conchas de pensamentos sonhando-se desertamente.”


E a noite dizia-me: “Vem comigo, pois, ao vento das dunas,
vem ver que lembranças esvoaçam na fronte quieta do sono,
e as pálpebras lisas, e a pálida face, e o lábio parado
e as livres mãos dos vagos corpos adormecidos!
Vem ver o silencio que tece e destece ordens sobre-humanas,
e os nomes efêmeros de tudo que desce à franja do horizonte!
Oh! Os nomes... – na espuma, na areia, no limite incerto dos mundos,
plácidos, frágeis, entregues à sua data breve,
irresponsáveis e meigos, boiando, boiando na sombra das almas,
suspiro da primavera na aresta súbita dos meses...”


E a linguagem da noite era velhíssima e exata.
E eu ia com ela pelas dunas, pelos horizontes,
entre moinhos e barcos, entre mil infinitos noturnos leitos.


Meus olhos andavam mais longe do que nunca,
voavam, nem fechados nem abertos,
independentes de mim,
sem peso algum, na escuridão,
e liam, liam, liam o que jamais esteve escrito,
na rasa solidão do tempo, e sem qualquer esperança
- qualquer.


Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Doze Noturnos da Holanda & O Aeronauta (1952)

"Um"



O rumor do mundo vai perdendo a força,
e os rostos e as falas são falsos e avulsos.
O tempo versátil foge por esquinas
de vidro, de seda, de abraços difusos.


A lua que chega traz outros convites:
inclina em meus olhos o celeste mapa,
desmorona os punhos crispados do dia,
desenha caminhos, transparente e abstrata.


Arvores da noite... Pensamento amante...
- Transporta-me a sombra, na altura profunda,
aos campos felizes onde se desprende
o diurno limite de cada criatura.


É a noite sem elos... Inocência eterna,
isenta de mortes e natividades,
pura e solitária, deslembrada, alheia,
mudamente aberta para extremas viagens.


Eu mesma não vejo quem sou, na alta noite,
nem creio que SEJA: perduro em memória,
à mercê dos ventos, das brumas nascidas
nos dormentes lagos que ao luar se evaporam.


Recebo teu nome também repartido,
quebrado nos diques, levado nas flores...
Quem sabe teu nome – tão longe, tão tarde,
tão fora do tempo, do reino dos homens...?


Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Doze Noturnos da Holanda & O Aeronauta (1952)
Seja bem-vindo. Hoje é