30 de ago. de 2014

A Língua de Nhem



Havia uma velhinha
que andava aborrecida
pois dava a sua vida
para falar com alguém.

E estava sempre em casa
a boa velhinha
resmungando sozinha:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem...

O gato que dormia
no canto da cozinha
escutando a velhinha,
principiou também

a miar nessa língua
e se ela resmungava,
o gatinho a acompanhava:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem...

Depois veio o cachorro
da casa da vizinha,
pato, cabra e galinha
de cá, de lá, de além,

e todos aprenderam
a falar noite e dia
naquela melodia
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem...

De modo que a velhinha
que muito padecia
por não ter companhia
nem falar com ninguém,

ficou toda contente,
pois mal a boca abria
tudo lhe respondia:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem...

Cecilia Meireles.
In Ou Isto ou Aquilo


27 de ago. de 2014

Diálogos do jardim



Debaixo de tanto calor,
o pássaro arranjou um ramo verde e fresco,
e pôs-se a falar.

O pássaro perguntava-me:
"Lembras-te das grandes árvores,
com lágrimas douradas de resina?"

Respondi-lhe que sim, que me lembrava,
que naquele tempo ouvíramos falar em âmbar,
e queríamos fazer colares de resina:
mas em nossas mãos ela perdia a transparência.

"Lembras-te dos cajus maduros,
caindo fofamente na folhagem morta do chão?"

Respondi-lhe que sim, que ainda os via,
muito longe, amarelos e túrgidos,
às vezes, rebentados, na queda,
escorrendo, perfumosos, sumo doce.

" Lembras-te das rodelinhas douradas
que a folhagem e o sol balançavam por cima dos livros?"

Respondi-lhe que sim, e que eram livros de histórias,
e foram depois romances, e um dia poemas,
e mais tarde pensamentos difíceis...

E o passarinho perguntava:
"Lembras-te da tua voz devolvida pelo eco?"

E eu me lembrava, mas não das palavras,
só que as respostas eram sempre incompletas.

"E o recorte da montanha, no horizonte,
lembras-te como era azul e negro? E as palmeiras?
E as sebes de flores encarnadas?"

E eu me lembrava de tudo, e sentia o aroma da tarde,
e o canto das cigarras, e o lamento dos sabiás
e das rolas,
e via brilhar a bola azul do telhado, que amei tanto,
e sentia, tão doce,a minha perpétua solidão.

E perguntei ao pássaro:"Onde estavas,
para me perguntares tudo isso?
Também já viveste tanto?"

E ele me respondeu: "Não, tudo isso está no fundo dos teus olhos.
Eu só vou perguntando o que estou lendo...
E, porque o leio, canto."


- Cecília Meireles,
in Dispersos

 

24 de ago. de 2014

TENTATIVA




Andei pelo mundo no meio dos homens: 
uns compravam jóias, uns compravam pão. 
Não houve mercado nem mercadoria 
que seduzisse a minha vaga mão. 

Calado, Calado, me diga, Calado 
por onde se encontra minha sedução. 

Alguns, sorririam, muitos, soluçaram, 
uns, porque tiveram, outros, porque não. 
Calado, Calado, eu, que não quis nada, 
porque ando com pena no meu coração? 

Se não vou ser santa, Calado, Calado, 
os sonhos de todos porque não me dão? 

Calado, Calado, perderam meus dias? 
ou gastei-os todos, só por distração? 
Não sou dos que levam: sou coisa levada... 
E nem sei daqueles que me levarão... 

Calado, me diga se devo ir-me embora, 
para que outro mundo e em que embarcação! 



CECíLIA MEIRELES 
In Viagem, 1939 

CANTIGA



Bem-te-vi que estás cantando
nos ramos da madrugada,
por muito que tenhas visto,
juro que não viste nada.

Não viste as ondas que vinham
tão desmanchadas na areia,
quase vida, quase morte,
quase corpo de sereia...

E as nuvens que vão andando
com marcha e atitude de homem,
com a mesma atitude e marcha
tanto chegam como somem.

Não viste as letras, que apostam
formar idéias com o vento...
E as mãos da noite quebrando
os talos do pensamento.

Passarinho tolo, tolo,
de olhinhos arregalados...
Bem-te-vi, que nunca viste
como os meus olhos fechados...


Cecília Meireles,
in Viagem





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