15 de mar. de 2012
"PROFUNDIDADE DA INSÔNIA"
Na insônia feliz é que se conhece o aroma certo
das fronhas, das madeiras, do ar, das sombras, e se escuta
o casual grito das aves, acordando
como em parques de outros países, noutros séculos.
Tilintam em subsolos imaginários
campainhas de insetos, em cortejos de gnomos,
Oh ! as nossas tranças, como estão cheias de bosques abraçados,
com arroios atravessando muros, cidades, meses...
Insônia feliz, na silenciosa solidão humana.
insônia acesa sobre o tempo.
E o braço dos santos,se levanta, grave e sem mãos,
nos arruinados oratórios,
com as bênçãos perdidas no ar de cera e flores mortas.
Ah , na insônia feliz é que as ausências se aproximam,
nos corredores da memória, hesitantes em cada porta.
Abrem-se, enfim, secretas janelas sobre os campos,
as pedras, os cemitérios, o livre mar, as nuvens tênues...
E de longe se avistam hastes com rosas, pavios com luzes :
— tudo ascensão de saudade e extrema lágrima.
Na insônia feliz, mortos e vivos saem de casa,
de braço dado, com seus ramos de perdão.
Acenam, sorriem, cordiais e recíprocos,
transparentes e imaculados, com suas auréolas de sol pálido.
Em trapézio de seda balança-se o peso dos infortúnios,
e as feras mansamente brincam, em jardim de cristal.
Na insônia feliz, sente-se o orvalho, a pétala, a asa :
a altura do céu, com seus andares superpostos
a vigilância do universo, sustentando seus abismos,
a outra insônia — a da morte — a de tudo que vive, além do humano;
a espantosa vigilância magnética e eterna , —de alto a baixo.
Na insônia feliz, nossas horas são episódio subterrâneo
de humildes enterrados, vagamente rastejando,
com mãos de cinza que tateiam o mar, o momento, as almas,
enquanto — mas de onde? — sobe em redor um ininteligível música.
Cecília Meireles
In: ‘Dispersos -
“PRELÚDIO DA MONÇÃO”
Vai chover muito.
No jardim que se esboroa de secura,
cada folha suplica uma gota d´água.
Os passarinhos já fecham os olhos,
antes que o sol lhes seque
o pingo líquido dos olhos.
As cigarras crepitam,
queimadas sobre os troncos ardentes.
Sai o halo do fogo de dentro das pedras.
Não há nada a fazer, senão descair
como as languidas palmas.
Esperar que seja possível a vida.
Vai chover muito:
tudo está olhando para as nuvens que engrossam,
que tropeçam no seu peso,
se acomodam para choverem tranquilamente.
Ah! como vai chover…
A ordem virá de um vento brando
que ainda se adestra longe.
Seu corcel pulará de súbito no alto do monte
e seu chicote luzirá no céu, turvo de azul.
Talvez o mar já sinta o comando remoto
e esteja concentrando seus cristais verdes,
estendendo sua pequena espuma fatigada,
cavando sua cavernas roxas,
oleosas campanulas súbitas,
nesse campo de estranhas metamorfoses.
Tremendo levemente estas pequenas folhas sensíveis,
e a sombra do céu virá toldar estas serenas estátuas.
As areias se moverão, timidamente, em seus lugares
e os galhos secos tristemente cairão, para sempre mortos.
Como vai chover!
Oh! Os tambores da chuva torrencial já se ouvem dentro do chão celeste…
Lá vem o corcel de retorcidas crinas,
e o látego do invisível ginete
ziguezagueia e esconde-se.
Vai chover toda a noite:
— no sono abafado da floresta profunda;
— nas calvas pedras, sulcadas por antigas tormentas;
—no grande mar parado e nublado pelo aguaceiro
— nos brancos cemitérios de anjos inúteis, de míseras lâmpadas;
— nas ruas vazias, com seus charcos onde se afogam as sombras humanas;
— nos jardins extenuados, com os pássaros escondidos até a voz.
Vai cair uma chuva intensa,
pelos vestidos dos santos,
pelos cabelos dos colegiais,
pelos vidros dos palácios,
pelas escadas dos asilos,
pelos pátios dos manicômios,
dos hospitais e dos necrotérios...
Vai cair uma chuva tão grande sobre todas as coisas,
que tudo ficará abolido;
mas ficará purificado?
Mesmo a palavra de amor,
o suspiro de agonia,
o protesto, o riso, o lamento
serão levados nessa chuva poderosa.
Ninguém poderá levantar a mão
e agarrar e prender como a trança de uma mulher,
a crina de um animal ou a ramagem de uma árvore,
essa livre chuva sem dono humano
que cai sozinha e governa.
Só quando o temporal cessar,
e os ralos das tristes cidades sossegarem,
se poderá subir o que sobrevive,
se alguma coisa recomeçará.
Cecília Meireles
In: ‘Dispersos’
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