29 de jun. de 2009

OS MORTOS



Creio que o morto ainda tinha chorado, depois da morte:
enquanto os pensamentos se desagregavam,
depois do coração se acostumar a ter parado.

Creio que sim, porque uma gota de choro havia entre a pálpebras,
feita de força já tão precária que nem pudera ir mais além,
que não correra, nem correria,
e que também não secava.

E que ninguém teria tido a coragem desumana de enxugar.

Por que foi que o morto chorou?
Que lembrança de sua vida chegaram até ali, reduzido àquilo?

Sua vida não foi boa nem má:
foi como a dos homens comuns,
a dos que não fizeram nenhum destino: aceitaram qualquer ...
Dentro dele se debateram todas as coisas,
e de dentro dele todas as coisas saíram repercutindo sua incerteza.

Creio que o morto chorou depois da morte.
Chorou por não ter sido outro.
(É só por isso que se chora.)

Mas sobre seus olhos havia uns outros, mais infelizes,
que estavam vendo, e entendendo, e continuavam sem nada.
Sem esperança de lágrima.
Recuados para um mundo sem vibração.
Tão incapazes de sentir que se via o tempo de sua morte.
Antiga morte já entrada em esquecimento.
Já de lágrimas secas.

E no entanto, ali perto, contemplando o morto recente.
Como se ainda fosse vida.

Maternal, porque o precedeu. Apenas, sem poder sofrer,
- de tanto saber e de tanto ter sido.


Cecília Meireles
in Mar Absoluto

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