22 de mar. de 2010

Itinerário



Primeiro, foram os verdes
e águas e pedras da tarde,
e meus sonhos de perder-te
e meus sonhos de encontrar-te...


Mas depois houve caminhos
pelas florestas lunares,
e, mortos em meus ouvidos,
mares brancos de palavras.


Achei lugares serenos
e aromas de fonte extinta.
Raízes fora do tempo,
com flores vivas ainda.


E eram flores encarnadas,
por cima das folhas verdes.
(Entre os espinhos de prata,
só meus sonhos de perder-te...)



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Vaga Música (1942)

Cantiguinha



Brota esta lagrima e cai.
Vêm de mim, mas não é minha.
Percebe-se que caminha,
sem que se saiba aonde vai.


Parece angustia espremida
de meu negro coração
- pelos meus olhos fugida
e quebrada em minha mão.


Mas é rio, mais profundo,
sem nascimento e sem fim,
que, atravessando este mundo,
passou por dentro de mim.



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Vaga Música (1942)

21 de mar. de 2010

Viagem



No perfume dos meus dedos,
há um gosto de sofrimento,
como o sangue dos segredos
no gume do pensamento.

Por onde é que vou?

Fechei as portas sozinha.
Custaram tanto a rodar!
Se chamasse, ninguém vinha.
Para que se há de chamar?

Que caminho estranho!

Eras coisa tão sem forma,
tão sem tempo, tão sem nada...
- arco-íris do meu dilúvio!-
que nem podias ser vista
nem quase mesmo pensada.

Ninguém mais caminha?

A noite bebeu-te as cores
para pintar as estrelas.
Desde então, que é dos meus olhos?
Voaram de mim para as nuvens,
com redes para prendê-las.

Quem te alcançará?

Dentro da noite mais densa,
navegarei sem rumores,
seguindo por onde fores
como um sonho que se pensa.

Por onde é que vou?



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Vaga Música (1942)

16 de mar. de 2010

Trinta anos no vale de exílios da sombra



Trinta anos no vale de exílios da sombra,
tua voz se eleva cintilante, responde-me
com seus cristais clarificados, - e sem nenhum rumor.


Fica repleta a noite e meus ouvidos te reconhecem:
os ouvidos que nem estão no meu corpo
nem na memória, mas só no ausente universo do sono.


Eu te digo: “Espera-me! Desculpa-me!
Vou chegar muito tarde!” E não sei se falo
com palavras ou símbolos, nas dimensões submersas do horizonte.


E eu te digo: “Atira-me a chave!” E deploro-me –
e de muito longe vejo a chave que me atiras,
e que receberei como álibi do sobrenatural.


Assim, eu sou agora, ainda que a mesma, também outra,
em mundo paralelo, com a chave da porta invisível,
e o som da tua voz é uma arvore clara que não se ouve,
numa atmosfera absurda –
como se nos fossemos encontrar, um dia, e continuássemos.


Abril, 4, 1963



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Sonhos (1950-1963)

Pela flor amarela viajaremos



Pela flor amarela viajaremos:
afastaremos as nuvens espessas
e as florestas de espinhos.


Pela flor amarela, vamos e voltamos,
por escadas escuras, corredores estreitos,
falando a desconhecidos.


Onde está, dizei-nos, a flor amarela?
Era minha? era vossa? era do seu próprio instante,
era sua, cativa por algum caçador floral?


Pela flor amarela atravessaremos a pedra,
o vidro, o metal, as palavras.
Atravessaremos o coração, como quem se mata.


Atravessaremos um novo mar desconhecido,
correremos Áfricas e Ásias, pólo e tropico,
e jogaremos nossa vida entre as estrelas.


A flor amarela está guardada em si mesma,
seu perfume, sob mil pétalas tranqüilas,
seu pólen resguardado contra o vão descobrimento.


1962



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Sonhos (1950-1963)

5 de mar. de 2010

Em algum lugar me encontro deitada


(Roman Zaslonov)


Em algum lugar me encontro deitada
com longos vestidos graves,
como um quadro, tênue de cor, muito sereno.


E reconheço-me.


Não há paisagem nenhuma, apenas um vazio imenso,
a luz de um crepúsculo imóvel,
uma grandiosa quietude.


Em algum lugar me encontro assim deitada,
sem brisa que me altere, presença que me perturbe.
Do céu à terra, de leste a oeste, tudo é muito longe,
infinitamente,
num lugar de nenhum país.


Horizontes de esquecimento circundam a imagem,
a imagem minha que parece venturosa,
que descansa em nobre solidão,
que talvez esteja sonhando
sonhos que jamais conhecerei,
mas que dão a seus olhos fechados
uma plácida curva.


Reconheço-me e ignoro-me.
(Uma noite dentro de outra noite.)


1958



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Sonhos

3 de mar. de 2010

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Porução de Regina Helena.
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