27 de ago. de 2010

Papeis

(Paint by Doreen Straarup)
I

Tão aflita, perguntava-me: “Por que vim? Por que vim?” Era a noite, em
redor. O grande cobertor da noite envolvia-me, opaco, abafava o mundo,
as lagrimas, as lembranças – e o mistério do dia seguinte. E os olhos
abertos não viam nada, na fina cegueira da treva: a parede mais próxima
estava tão longe quanto o horizonte, o universo, Deus. Inclinava a cabeça
nos pulsos onde a idéia da vida batia, batia. Batia desde muito tempo, com
o mesmo compasso, regular seguro, obediente. Batera assim no meio do
céu e no meio do mar, nas ruas todas da terra entre coisas banais e coisas
que pareciam tão graves. Batera assim diante de cóleras, vaidades, mortes,
incompreensões. Batera. Batera assim nos campos da infância, na eterna
madrugada. E houve infância?

II

A infância era uma vastidão de silencio, por mais que cantassem os
pássaros, e que as tempestades rugissem entre os trovões e o vento.
Por mais que as ruas se enchessem de vozerio, que as conversas
familiares circulassem pelas mesas, pelas salas, pelos jardins. A infância
era aquela voz presa atrás de muros. Aquela pergunta a subir no tempo.
Que só o tempo responderá.


Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)

25 de ago. de 2010

''Não: já não falo de ti, já não sei de saudades''


Não: já não falo de ti, já não sei de saudades.
Feche-se o coração como um livro, cheio de imagens,
de palavras adormecidas, em altas prateleiras,
até que o pó desfaça o pobre desespero sem força,
que um dia, pode ser, pareceu tão terrível.


A aranha dorme em sua teia, lá fora, entre a roseira e o muro.
Resplandecem os azulejos – é tudo quanto posso ver.
O resto é imaginado, e não coincide, e é temerário
cismar. Talvez se as pálpebras pudessem
inventar outros sonhos, não de vida...


Ah! rompem-se na noite ardentes violas,
pelo ar e pelo frio subitamente roçadas.
Por onde nascerão, nestes céus invioláveis,
nossas perguntas com suas crinas de séculos arrastando-se...
Não só de amor a noite transborda mas de terríveis
crueldades, loucuras, de homicídios mais verdadeiros.


Os homens de sangue estão nas esquinas resfolegando,
e os homens da lei sonolentos movem letras
sobre imensos papeis que eles mesmos não entendem...
Ah! que rosto amaríamos ver inclinar-se da aérea varanda?
Nem os santos podem mais nada. Talvez os anjos abstratos
da álgebra e da geometria.



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)

16 de ago. de 2010

Dias da rosa



A Lúcia Machado de Almeida


No primeiro dia, foi apenas um mistério de seda e nácar.
Fechada como um sono.
Uma abelha rodava, descobrindo-a.
O resto ficava desatento àquele silencio.


No entanto, cada minuto se movia naquela haste,
invisível e ativo:
ali também reinava o tempo.


No segundo dia, foi como um sorriso,
um olhar levantando pálpebras translúcidas,
um rosto aparecendo na sombra, redondo e claro.
E ninguém podia deixar de ser alegre, vendo-a.


No terceiro dia, todas as suas sedas se expandiram.
Parecia uma voz, um cântico.
Pensei que fosse morrer, nessa abundancia,
mas apenas se debruçava em perfume.


E, como borboletas ou pássaros,
as pessoas vinham sentir, extasiadas,
seu aroma de fruta e mel.


(O ar estava mudado: tudo eram ímãs de frescura.)


No quarto dia, deixou cair subitamente
Aquela gloria de aromas e sedas,
aquele vestuário efêmero e radioso.
Ficou sendo somente um coração coroado
com leves espinhos eternos de ouro.


Mas ninguém mais amava essa infinita beleza póstuma.
O esquema secreto da vida, que ali se manifestava:
inicio, biografia, continuação!


Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)

9 de ago. de 2010

Sobre as muralhas do mar


Sobre as muralhas do mar
conversaremos.


Sobre as muralhas do mar, entre areias,
espumas, colunas,
o que passa e o que perdura.
Conversaremos.
Conversaremos de um tempo
que imaginamos.
Que não houve: azuis e verdes
caminhos, destinos, glorias.


Conversaremos.


Os muros do mar são altos.
E esquecemos.
E as perguntas ficam intactas,
não mudadas em respostas.


Como é o som das palavras sobre as ondas?
E um riso de asas, de brisas
de uma alegria selvagem escutaremos.
No longínquo mar das almas.


Não conversaremos

Los Angeles, 1959



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Viagem (1939)

4 de ago. de 2010

'Rua dos rostos perdidos'


Este vento não leva apenas os chapéus,
estas plumas, estas sedas:
este vento leva todos os rostos,
muito mais depressa.


Nossas vozes já estão longe,
e como se pode conversar,
como podem conversar estes passantes
decapitados pelo vento?


Não, não podemos segurar o nosso rosto:
as mãos encontram o ar,
a sucessão das datas,
a sombra das fugas, impalpável.


Quando voltares por aqui,
saberás que teus olhos
não se fundiram em lagrimas, não,
mas em tempo.


De muito longe avisto a nossa passagem
nesta rua, nesta tarde, neste outono,
nesta cidade, neste mundo, neste dia.
(Não leias o nome da rua, - não leias!)


Conta as tuas historias de amor
como quem estivesse gravando,
vagaroso, um fiel diamante.
E tudo fosse eterno e imóvel.

New York, 1959



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Viagem (1939)
Seja bem-vindo. Hoje é