23 de ago. de 2011

XXI


O teu começo vem de muito longe.
O teu fim termina no teu começo.
Contempla-te em redor.
Compara.
Tudo é o mesmo.
Tudo é sem mudança.
Só as cores e as linhas mudaram.
Que importa as cores, para o Senhor da Luz?
Dentro das cores a luz é a mesma.
Que importa as linhas, para o Senhor do Ritmo?
Dentro das linhas o ritmo é igual.
Os outros vêem com os olhos ensombrados.
Que o mundo perturbou,
Com as novas formas.
Com as novas tintas.
Tu verás com os teus olhos.
Em sabedoria.
E verás muito além.


Cecília Meireles
de 'Cânticos'

9 de ago. de 2011

Adivinhação do personagem

Algum tamanho e peso.
Densidade para as quedas.
No entanto, alguma luz.


As peças anatômicas em seus lugares certos.
Nada porem digno de extrema admiração:
Nem Apolo nem Adônis.
Personagem, porém, personagem.


Olha, vê, não vê, não sabe, não se sabe o que vê e não vê.
Fala, pensa, não pensa, não sabe, nem se sabe, se pensa e não pensa.
Olha, fala.


Move-se.
Ele mesmo não sabe, para onde.
Move-se contraditório
com os pés na terra, mas a cabeça
e num mundo invisível de mil pólos.


Personagem: sente-se, não se sente, não se sabe nem sabe como e por quê.


Pode estar em tantos lugares,
pode ser tantas vidas.
Homem, animal, planta, pedra,
tudo que inventar e quiser.
Poderá ser deus?
Sonha-se.


Personagem de cidades e eras arbitrarias,
com os seus idiomas confusos
em labirintos de idéias, de heranças, de ímpetos.


Ama, desama,
desmonta seus mecanismos, de repente, devagar.
Por quê? Sabe, não sabe, decide, arrepende-se.


Tem lagrimas inesperadas, alegrias –
quando ficar triste? quando vai ser feliz?


Personagem que lembra e esquece querendo e sem querer.


Tem quatro pés, dois pés, três pés.
Depois continua a marchar sem necessidade de pés,
e voa sem ter asas.


Com densidade para as quedas
e presságios de luz.
todos os dias são de êxodo
para um lugar que a Esfinge se esqueceu de dizer.


Permite, dolorido personagem.

1961



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)

Canção



Era um rosto
na noite larga
de altas insônias
iluminada.


Serás um dia
vago retrato
de quem se diga:
“o antepassado”.


Eras um poema
cujas palavras
cresciam dentre
mistério e lagrimas.


Serás silencio,
tempo sem rastro,
de esquecimentos
atravessado.


Disso é que sofre
a amargurada
flor da memória
que ao vento fala.



Cecília Meireles
In: Retrato Natural

Pranto no mar

Eu sempre te disse que era grande o oceano
para a nossa pequena barca.
Cantavas, quando eu te dava o desengano
de partir por água tão larga.


Não, tu não devias ter ido.
Mas foi tempo perdido.


Eu sempre te disse que os olhos de um morto
ficavam nas águas suspensos,
procurando os vivos, os mastros, o porto,
na oscilação de águas e ventos.


Não, tu não devias ter ido.
Mas era amor perdido.
Teço velas negras para a barca nova,
redes de prata para as ondas.
Ensinai-me, peixes, sua funda cova
nestas escuridões tão longas!


Não, tu não devias ter ido.
E isto é pranto perdido.



Cecília Meireles
In: Retrato Natural

Cantata vesperal

Cerrai-vos, olhos, que é tarde, e longe,
e acabou-se a festa do mundo:
começam as saudades hoje.


Longos adeuses pelas varandas
perdem-se; e vão fugindo em mármore
cascatas céleres de escadas.


Pelos portões não passam mais sombras,
nem há mais vozes que se entendam
nas distancias que o céu desdobra.


As ruas levam a mares densos.
E pelos mares fogem barcas
sem esperanças de endereços.



Cecília Meireles
In: Retrato Natural


Seja bem-vindo. Hoje é