12 de nov. de 2012

"Ritmo de Nápoles"



 

Atravesso este momento,
transfigurada de outrora.
por muros brancos de estatuas.

Em sonho vou respondendo
ao que dizem noutra língua.
E a lua nasce entre os álamos.

Que haja amor ou desespero,
tudo é como a frágil tinta
desta tarde nestas águas.

Sei que cantam, sei que passam,
que os barcos tem remos verdes
e aquele é o golfo de Nápoles.

Sei que em minha alma há silencio,
que envolvo em silencio o mundo
e há primavera nas arvores.
  

Cecília Meireles
In: Poemas Italianos

“PRELÚDIO DA MONÇÃO”




Vai chover muito.
No jardim que se esboroa de secura,
cada folha suplica uma gota d´água.

Os passarinhos já fecham os olhos,
antes que o sol lhes seque
o pingo líquido dos olhos.

As cigarras crepitam,
queimadas sobre os troncos ardentes.
Sai o halo do fogo de dentro das pedras.
Não há nada a fazer, senão descair
como as lânguidas palmas.
Esperar que seja possível a vida.

Vai chover muito:
tudo está olhando para as nuvens que engrossam,
que tropeçam no seu peso,
se acomodam para choverem tranquilamente.
Ah! como vai chover…

A ordem virá de um vento brando
que ainda se adestra longe.
Seu corcel pulará de súbito no alto do monte
e seu chicote luzirá no céu, turvo de azul.

Talvez o mar já sinta o comando remoto
e esteja concentrando seus cristais verdes,
estendendo sua pequena espuma fatigada,
cavando sua cavernas roxas,
oleosas campânulas súbitas,
nesse campo de estranhas metamorfoses.

Tremendo levemente estas pequenas folhas sensíveis,
e a sombra do céu virá toldar estas serenas estátuas.
As areias se moverão, timidamente, em seus lugares
e os galhos secos tristemente cairão, para sempre mortos.

Como vai chover!
Oh! Os tambores da chuva torrencial já se ouvem dentro do chão celeste…
Lá vem o corcel de retorcidas crinas,
e o látego do invisível ginete
ziguezagueia e esconde-se.

Vai chover toda a noite:
— no sono abafado da floresta profunda;
— nas calvas pedras, sulcadas por antigas tormentas;
— no grande mar parado e nublado pelo aguaceiro
— nos brancos cemitérios de anjos inúteis, de míseras lâmpadas;
— nas ruas vazias, com seus charcos onde se afogam as sombras humanas;
— nos jardins extenuados, com os pássaros escondidos até a voz.

Vai cair uma chuva intensa,
pelos vestidos dos santos,
pelos cabelos dos colegiais,
pelos vidros dos palácios,
pelas escadas dos asilos,
pelos pátios dos manicômios,
dos hospitais e dos necrotérios...

Vai cair uma chuva tão grande sobre todas as coisas,
que tudo ficará abolido;
mas ficará purificado?

Mesmo a palavra de amor,
o suspiro de agonia,
o protesto, o riso, o lamento
serão levados nessa chuva poderosa.

Ninguém poderá levantar a mão
e agarrar e prender como a trança de uma mulher,
a crina de um animal ou a ramagem de uma árvore,
essa livre chuva sem dono humano
que cai sozinha e governa.

Só quando o temporal cessar,
e os ralos das tristes cidades sossegarem,
se poderá subir o que sobrevive,
se alguma coisa recomeçará.

Cecília Meireles 
de ‘Dispersos’

''Aedo''



Nós cinco sabemos de tudo
e estamos sorrindo sem medos,
em cinco rostos absolutos,
na prata de um único espelho.

Rosa imortal e eterna murta
nem pousam no nosso cabelo.

Concentramos na lama o perfume
de que os outros fabricam beijos.

No silêncio dos nossos vultos,
não toca o pressuroso vento,
para que não se incline o lume
dos vigilantes céus acesos.

Somos cinco estranhas colunas
visitadas só pelo tempo,
feitas de dunas e de espumas,
- fábulas do humano momento.

Por desamor às criaturas e
outros desamores terrenos,
desabaremos todas juntas:
- Deus fechando os seus cinco dedos.

Cecília Meireles
de: "Canções",
Seja bem-vindo. Hoje é