27 de fev. de 2014

PERSONAGEM



Teu nome é quase indiferente
e nem teu rosto já me inquieta.
A arte de amar é exactamente
a de se ser poeta.

Para pensar em ti, me basta
o próprio amor que por ti sinto:
és a ideia, serena e casta,
nutrida do enigma do instinto.

O lugar da tua presença
é um deserto, entre variedades:
mas nesse deserto é que pensa
o olhar de todas as saudades.

Meus sonhos viajam rumos tristes
e, no seu profundo universo,
tu, sem forma e sem nome, existes,
silêncio, obscuro, disperso.

Teu corpo, e teu rosto, e teu nome,
teu coração, tua existência,
tudo - o espaço evita e consome:
e eu só conheço a tua ausência.

Eu só conheço o que não vejo.
E, nesse abismo do meu sonho,
alheia a todo outro desejo,
me decomponho e recomponho.


Cecília Meireles,
in 'Viagem'
 


25 de fev. de 2014

SAIS PELO SONHO COMO DE UM CASULO E VOAS




Sais pelo sonho como de um casulo e voas.

Com tal leveza podes percorrer o mapa
e ir e vir ao acaso, ar e nome:
como as borboletas.

Não és tu, mas a tua memória com asas.

E abrem-se os palácios,
e percorres os tesouros guardados,
e és sorriso e silêncio
e já nem precisas mais de asas.

Na noite encontras o dia, claro e durável
Voas sobre séculos e horóscopos
Ouves dizer que te amam
como ninguém jamais o poderia confessar.

Não tens idade nem tribo,
nem rosto nem profissão.
Podes fazer o que quiseres com palavras,harpas,almas.

E quando voltas ao teu casulo
já não tens medo nenhum da morte.
E em teu pensamento há néctar e pólen.

Cecília Meireles
In Sonhos

ACALANTO



Dorme que eu penso.
Cada qual assim navega
pelo seu mar imenso.

Estarás vendo.Eu estou cega.
Nem te vejo nem a mim.
No teu mar, talvez se chega.
Este, não tem fim.

Dorme, que eu penso.
Que eu penso nesse navio
clarividente em que vais.
Mensagens tristes lhe envio
Pensamentos...- nada mais.



Cecília Meireles
In Mar Absoluto e outros poemas


CANCÃO PARA VAN GOGH




Os azuis estão cantando
no coração das turquesas:
formam lagos delicados,
campo lírico, horizonte,
sonhando onde quer que estejas.

E os amarelos estendem
frouxos tapetes de outono,
cortinados de ouro enxofre,
luz de girassóis e dálias
para a curva do teu sono.

Tudo está preso em suspiros,
protegendo o teu descanso.
E os encarnados e os verdes
e os pardacentos e os negros
desejam secar-te o pranto.

Ó vastas flores torcidas,
revoltos clarões do vento,
voz do mundo em campos e águas,
de tão longe cavalgando
as perspectivas do tempo!

No reino ardente das cores,
dormem tuas mãos caídas.
Luz e sombra estão cantando
para os olhos que fechaste
sobre as horas agressivas.

E é tão belo ser cantado,
muito acima deste mundo...
E é tão doce estar dormindo!
É preciso dormir tanto!
(É preciso dormir muito...)

Cecília Meireles
In Palavras e Pétalas
















23 de fev. de 2014

Eternidade inútil




Até morrer estarei enamorada
de coisas impossíveis:


tudo que invento, apenas,
e dura menos que eu,
que chega e passa.


Não chorarei minha triste brevidade:
unicamente a alheia,
a esperança plantada em tristes dunas,
em vento, em nuvens, n’água.


A pronta decadência,
a fuga súbita
de cada coisa amada.


O amor sozinho vagava.
Sem mais nada além de mim...
numa eternidade inútil.



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)






22 de fev. de 2014

O REI DO MAR




Muitas velas. Muitos remos.
Âncora é outro falar...
Tempo que navegaremos
não se pode calcular.

Vimos as Plêiades. Vemos
agora a Estrela Polar.
Muitas velas. Muitos remos.
Curta vida. Longo mar.

Por água brava ou serena
deixamos nosso cantar,
vendo a voz como é pequena
sobre o comprimento do ar.
Se alguém ouvir, temos pena:
só cantamos para o mar...

Nem tormenta, nem tormento
nos poderia parar.
(Muitas velas. Muitos remos.
Âncora é outro falar...)
Andamos entre água e vento
procurando o Rei do Mar.


Cecília Meireles
in Flor de poemas


21 de fev. de 2014

PONTE




Frágil ponte:
arco-íris, teia
de aranha,gaze
de água, espuma,
nuvem, luar.
Quase nada:
quase
a morte.

Por ela passeia,
passeia,
sem esperança nenhuma,
meu desejo de te amar.

Céu que miro?
- alta neblina.
Longo horizonte
- mas só de mar.

E esta ponte
que se arqueia
como um suspiro
- tênue renda cristalina -
será possível que transporte
a algum lugar?

Por ela passeia,
passeia
meu desejo de te amar.

Em franjas de areia,
chegada do fundo
lânguido do mundo,
às vezes, uma sereia
vem cantar.
E em seu canto te nomeia.

Por isso, a ponte se alteia,
e para longe se lança,
nessa frágil teia
- invisível, fina
renda cristalina
que a morte balança,
torna a balançar...

(Por ela passeia
meu desejo de te amar.)


Cecília Meireles
In Vaga Música
























LEMBRANÇA RURAL



Chão verde e mole.Cheiros de selva.Babas de lodo.
A encosta barrenta aceita o frio, toda nua.
Carros de bois, falas ao vento, braços, foices.
Os passarinhos bebem do céu pingos de chuva.

Casebres caindo, na erma tarde;Nem existem
na história do mundo. Sentam-se à porta as mães descalças.
É tão profundo, o campo, que ninguém chega a ver que é triste.
A roupa da noite esconde tudo, quando passa...

Flores molhadas.Última abelha.Nuvens gordas.
Vestidos vermelhos, muito longe, dançam nas cercas.
Cigarra escondida, ensaiando na sombra rumores de bronze.
Debaixo da ponte, a água suspira, presa...

Vontade de ficar neste sossego toda a vida:
bom para ver de frente os olhos turvos das palavras,
para andar à toa, falando sozinha,
enquanto as formigas caminham nas árvores...


Cecília Meireles
In Vaga Música

18 de fev. de 2014

A FLOR AMARELA





Olha
A janela
Da bela
Arabela.

Que flor
É aquela
Que Arabela
Molha?

É uma flor amarela.


Cecília Meireles,
in Ou isto ou aquilo

As meninas



Arabela
abria a janela.

Carolina
erguia a cortina.

E Maria
olhava e sorria:
“Bom dia!”

Arabela
foi sempre a mais bela.

Carolina,
a mais sábia menina.

E Maria
apenas sorria:
“Bom dia!”

Pensaremos em cada menina
que vivia naquela janela;
uma que se chamava Arabela,
outra que se chamou Carolina.
.
Mas a nossa profunda saudade
é Maria, Maria, Maria,
que dizia com voz de amizade:

"Bom dia!”


Cecília Meireles,
in Ou isto ou aquilo.

OS CARNEIRINHOS



Todos querem ser pastores,
Quando encontram, de manhã,
Os carneirinhos,
Enroladinhos
Como carretéis de lãs.

Todos querem ser pastores
E ter coroas de flores
E um cajadinho na mão
E tocar uma flautinha
E soprar numa palhinha
Qualquer canção.

Todos querem ser cantores
Quando a estrela da manhã
Brilha só, no céu sombrio,
Vão descendo os carneirinhos
Como carretéis de lãs...

Cecília Meireles,
in Ou isto ou aquilo.

Tanta tinta




Ah! menina tonta,
toda suja de tinta
mal o sol desponta!

(Sentou-se na ponte,
muito desatenta...
E agora se espanta:
Quem é que a ponte pinta
com tanta tinta?...)

A ponte aponta
e se desaponta.
A tontinha tenta
limpar a tinta,
ponto por ponto
e pinta por pinta...

Ah! a menina tonta!
Não viu a tinta da ponte!

Cecília Meireles,
in Ou isto ou aquilo.

10




Em colcha florida
me deitei.
Pássaros pintados
escutei.
Grinaldas nos ares
completei.

Da morte e da vida
me lembrei.
Dias acabados
lamentei.

(Flores singulares
não bordei.
A canção trazida
não cantei.

Naveguei tormentas pelos quatro lados.
Não as amansei!
Ó grinaldas, flores, pássaros pintados,
como dormirei?)


Cecília Meireles
In Metal Rosicler

Da solidão




Estarei só. Não por separada, não por evadida.
Pela natureza de ser só.


No entanto, a multidão tem sua musica,
seu ritmo, seu calor,
e deve ser uma felicidade, às vezes,
ser na multidão o que o peixe é no oceano.
Ah! mas quem sabe das solidões que haverá nessas águas enormes!


Estarei só. Recordarei essas cidades, esses tempos.
Recordarei esses rostos. Pode ser que recorde
alguma palavra.
Nada perturbou o meu estar só. Por vezes, com o rosto nas mãos,
pode ser que sentisse como os desertos amontoavam suas areias
entre meu pensamento e o horizonte.
Mas o deserto tem sua musica,
seu ritmo, seu calor.


Era uma solidão que outrora se levava nos dedos,
como a chave do silencio. Uma solidão de infância
sobre a qual se podia brincar,
como sobre um tapete.
Uma solidão que se podia ouvir, como quem olha para as arvores,
onde há vento.
Uma solidão que se podia ver, provar, sentir,
pensar, sofrer, amar,
uma solidão como um corpo, fechado sobre a noção que temos de nós:
como a noção que temos de nós.


E andava, e sorria, cumprimentava e fazia discursos,
dava autógrafos, abria a janela, conhecia gavetas,
chaves, endereços, comprava, lia,
recordava, sonhava,
às vezes pensava – Solidão – e logo seguia,
tinha até dinheiro comigo, tinha palavras, também,
que escolhia, dava, usava, recusava...


Solidão – dizia: fechava a tarde de mil portas,
andava por essas fortalezas da noite,
essas escadas, essas plataformas, essas pedras...
e deitava-me sobre o mar, sobre as florestas,
deitava-me assim – aldeias? cidades?
O sono é um límpido deserto – deitava-me nos ares,
onde quer que estivesse deitada.


Deitava-me nessas asas. Ia para outras solidões.


Se me chamares, responderei, mas serei solidão.
Serei solidão, se me esqueceres ou lembrares.
Qualquer coisa que sintas por mim, eu te retribuirei:
como o eco.
Mas és tu que vens e voltas:
a tua solidão e a minha solidão.

1958


Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)


Seja bem-vindo. Hoje é