28 de jan. de 2015

Falai de Deus com a clareza



Falai de Deus com a clareza
da verdade e da certeza:
com um poder

de corpo e alma que não possa
ninguém, à passagem vossa,
não o entender.

Falai de Deus brandamente,
que o mundo se pôs dolente,
tão sem leis.

Falai de Deus com doçura,
que é difícil ser criatura:
bem o sabeis.

Falai de Deus de tal modo
que por Ele o mundo todo
tenha amor

à vida e à morte, e, de vê-Lo,
O escolha como modelo
superior.

Com voz, pensamentos e atos
representai tão exatos
os reinos seus

que todos vão livremente
para esse encontro excelente.
Falai de Deus.



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)

Abriu-se a janela



Abriu-se a janela
que existia no ar.
Ninguém viu posar
qualquer sombra nela.

Entre o lago e a lua,
sozinha subia
uma arvore fria,
delicada e nua.

E, de galho em galho,
andavam as loucas,
com cestas e toucas,
em busca de orvalho.

Azuis, os vestidos,
e o rosto coberto
de um luar incerto
- com os traços perdidos.

(Certamente para
que ninguém lembrasse
a dorida face
que amara e chorara...)

As loucas nos ramos
brincavam. E havia
no ar essa alegria
que nunca alcançamos.

Pela madrugada,
desfez-se a janela.
Partiram, com ela,
as sombras do nada.



Cecília Meireles
In: Canções (1956)

Distância



Quando o sol ia acabando
e as águas mal se moviam,
tudo que era meu chorava
da mesma melancolia.


Outras lágrimas nasceram
com o nascimento do dia:
só de noite esteve sêco
meu rosto sem alegria.
(Talvez o sol que acabara
e as águas que se perdiam
transportassem minha sombra
para a sua companhia...)


Oh!
mas nem no sol nem nas águas
os teus olhos a veriam...
— que andam longe, irmãos da lua,
muito clara e muito fria...



Cecília Meireles
in 'Viagem'
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