26 de set. de 2009

Epigrama N° 3



Mutilados jardins e primaveras abolidas
abriram seus miraculosos ramos
no cristal em que pousa a minha mão.

(Prodigioso perfume!)

Recompuseram-se tempos, formas, cores, vidas ...

Ah! mundo vegetal, nós, humanos, choramos
só da incerteza da ressurreição.


Cecília Meireles
Viagem, 1938

21 de set. de 2009

CANTIGA OUTONAL



Outono. As árvores pensando ...
Tristezas mórbidas no mar ...
O vento passa, brando ... brando ...
E sinto medo, susto, quando
Escuto o vento assim passar ...

Outono. Eu tenho a alma coberta
De folhas mortas, em que o luar
Chora, alta noite, na deserta
Quietude triste da hora incerta
Que cai do tempo, devagar ...

Outono. E quando o vento agita,
Agita os galhos negros, no ar,
Minha alma sofre e põe-se aflita,
Na inconsolável, na infinita
Pena de ter de se esfolhar ...


Cecília Meireles
In Nunca Mais e Poema dos Poemas

Evocação


(Pierre-Augustin Caron de Beaumarchais, Paris -1732-1799)

(Lendo Beaumarchais)


Noite fresca e serena. Aberta a gelosia
Do florido balcão, numa penumbra leve,
Dorme a câmara avoenga. O vulto a um canto amplia
O velho cravo mudo. O luar Poe tons de neve


No embutido do assoalho, em que a sombra descreve,
Larga e aconchegadora, a poltrona macia,
Onde sonha, esquecida, uma guitarra breve
O seu sonho eternal de amor e melodia.


Há um perfume no ambiente – um perfume de outrora,
Muito vago, a lembrar todo um passado morto...
... E é quando no silencio um largo acorde chora,


e sente-se fremir, numa estranha dolência,
sob o esplendido céu, calmo, profundo, absorto,
a alma de Querubim, na ansiosa adolescência...



Cecília Meireles
In: Espectros

Feliz Ano 5.770 !!!



Minhas sinceras homenagens a todo povo judeu, Feliz Ano 5.770,
שתהיה לך שנה מתוקה נפלאה ומלאה בדברים טובים

שנה טובה

16 de set. de 2009

13


(Julie Andrews , The Sound of Music')


Gente que anda pela vida
precisa andar distraída
(e as coisas distraem tanto!).


Mas eu, que fiquei parada,
como não encontro nada
para distrair-me – canto.



Cecília Meireles
In: Morena, Pena de amor -1.939

Dedicatória


(Cary Grant and Grace Kelly,'To Catch a Thief')


Vai-se a vida,
resta a canção.
Não foi uma canção perdida.
Ficaste no meu coração.


Queria só um sorriso.
Mas deram-me um beijo.
Perdi metade do juízo
e fui dar ao Paraíso.
São Pedro, vendo-me a cara,
dizia: “Mas que pequena!
Com uma estrela tão clara
numa boca tão morena!”


(Qual seria esse tesouro?
Seria o teu beijo?
Seria o sorriso?
Ou apenas o ouro
do meu dente siso?)



Cecília Meireles
In: Morena, Pena de amor -1.939

SOB A TUA SERENIDADE



Não me ouvirás ...É vão ... Tudo se espalha
Pelos ermos de azul ... E permaneces
Sobre o vale das súplicas e preces
Com solenes grandezas de muralha ...

Minha alma, sem Te ouvir nem ver, trabalha
Tranqüila. Solidão ... Desinteresses ...
Por que pedir? De tudo que me desses
Nada servirá a esta existência falha...

Nada servirá, agora ... E, noutra vida,
Oh, noutra vida eu sei que terei tudo
Que há na paragem bem-aventurada ...

Tudo – porque eu nasci desiludida
E sofri, de olhos mansos, lábio mudo,
Não tenho nada e não pedindo nada ...


Cecília Meireles
In Nunca Mais

13 de set. de 2009

Arco de pedra, torre em nuvens embutida


(Santorini- Grécia)


Arco de pedra, torre em nuvens embutida,
sino em cima do mar e luas de asas brancas...
Meu vulto anda em redor, abraçado a perguntas.

Anda em redor minha alma: e a música e a ampulheta
desmancham-se no céu, nas minhas mãos dolentes,
e a vastidão do amor fragmenta-se em mosaicos.

Ó calma arquitetura onde os santos passeiam
e com olhos sem sono observam labirintos
de terra triste em que os destinos se entrelaçam.

... - presa estou, como a rosa e o cristal, nas arestas
de exatas cifras delicadas que se encontram
e se separam: em polígonos de adeuses...

Alada forma,onde coincidimos?


Cecilia Meireles
in 'Slombra'

4 de set. de 2009

A chuva chove



A chuva chove mansamente ... como um sono
Que tranqüilize, pacifique, resserene ...
A chuva chove mansamente ... Que abandono!
A chuva é a música de um poema de Verlaine ...

E vem-me o sonho de uma véspera solene,
Em certo paço, já sem data e já sem dono ...
Véspera triste como a noite, que envenene
A alma, evocando coisas líricas de outono ...

... Num velho paço, muito longe, em terra estranha,
Com muita névoa pelos ombros da montanha ...
Paço de imensos corredores espectrais,

Onde murmurem velhos órgãos árias mortas,
Enquanto o vento, estrepitando pelas portas,
Revira in-fólios, cancioneiros e missais ...


Cecília Meireles
In Nunca Mais e Poema dos Poemas

Espectros



Nas noites tempestuosas, sobretudo
Quando lá fora o vendaval estronda
E do pélago iroso à voz hedionda
Os céus respondem e estremece tudo,


Do alfarrábio, que esta alma ávida sonda.
Erguendo o olhar; exausto a tanto estudo,
Vejo ante mim, pelo aposento mudo,
Passarem lentos, em morosa ronda,


Da lâmpada à inconstante claridade
(Que ao vento ora esmorece ora se aviva,
Em largas sombras e esplendor de sois),


Silenciosos fantasmas de outra idade,
À sugestão da noite rediviva
- Deuses, demônios, monstros, reis e heróis.


Cecília Meireles
In: Espectros (1919)

BEATITUDE



Corta-me o espírito de chagas!
Põe-me aflições em toda a vida:
Não me ouvirás queixas nem pragas ...

Eu já nasci desiludida,
De alma votada ao sofrimento
E com renúncias de suicida ...

Sobre o meu grande desalento,
Tudo, mas tudo, passa breve,
Breve, alto e longe como o vento ...

Tudo, mas tudo, passa leve,
Numa sombra muito fugace,
- Sombra de neve sobre neve ... –

Não deixando na minha face
Nem mais surpresas nem mais sustos:
- É como, até, se não passasse ...

Todos os fins são bons e justos ...
Alma desfeita, corpo exausto,
Olho as coisas de olhos augustos ...

Dou-lhes nimbos irreais de fausto,
Numa grande benevolência
De quem nascei u para o holocausto!

Empresto ao mundo outra aparência
E às palavras outra pronúncia,
Na suprema benevolência

De quem nasceu para a Renúncia! ...


Cecília Meireles
In Nunca Mais e Poema dos Poemas

Á HORA EM QUE OS CISNES CANTAM ...



Nem palavras de adeus, nem gestos de abandono.
Nenhuma explicação. Silêncio. Morte. Ausência.
O ópio do luar banhando os meus olhos de sono ...
Benevolência. Inconseqüência. Inexistência.

Paz dos que não tem fé, nem carinho, nem dono ...
Todo perdão divino e a divina clemência!
Oiro que cai dos céus pelos frios do outono ...
Esmola que faz bem ... – nem gestos, nem violência ...

Nem palavras. Nem choro. A mudez. Pensativas
Abstrações. Vão temores de saber. Lento, lento
Volver de olhos, em torno, augurais e espectrais ...

Todas as negações. Todas as negativas.
Ódio? Amor? Lê? Tu? Sim Não? Riso? Lamento?
- Nenhum mais. Ninguém mais. Nada mais. Nunca mais ...


Cecília Meireles
In 'Nunca Mais e Poema dos Poemas'1923
Seja bem-vindo. Hoje é