30 de abr. de 2010

Perspectiva


Tua passagem se fez por distancias antigas.
O silencio dos desertos pesava-lhe nas asas
e, juntamente com ele, o volume das montanhas e do mar.


Tua velocidade desloca mundos e almas.
Por isso, quando passaste, caiu sobre mim tua violência
e desde então alguma coisa se aboliu.


Guardo uma sensação de drama sombrio, com vozes de ondas
lamentando-me, e a multidão das estrelas avermelhadas fugindo
com o céu para longe de mim.


Os dias que vêm são feitos de vento plácido e apagam tudo.
Dispersam a sombra dos gestos sobre os cenários.
Levam dos lábios cada palavra que desponta.
Gastam o contorno da minha síntese.
Acumulam ausência em minha vida...


Oh! um pouco de neve matando, docemente, folha a folha...


Mas a seiva lá dentro continua, sufocada,
nutrindo de sonho a morte.



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Viagem (1939)

23 de abr. de 2010

Sonho com plantas e gestos amáveis


Em sonho vireis delicadamente
e sem motivo algum
direis palavras amáveis
que vos surpreenderiam
se vos fossem contadas.


Em sonho mandareis colocar no meu terraço
plantas cheias de flores
que todos admirariam,
pois jamais foram vistas
da China à Patagônia
e existem apenas neste sonho.


Jamais saberei o que sonháveis
enquanto eu sonhava com as vossas gentilezas.
Jamais sabereis que tais gentilezas foram sonhadas.


Sem motivo algum,
ficam floridos noutro mundo os meus terraços.
E somente eu poderei pensar nisso.
Somente eu vi tudo isso.


E é como um achado arqueológico,
momentâneo e perene
entre o ar e o pó.


1959



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Sonhos (1950-1963)

21 de abr. de 2010

Fala-me agora, que estou cansado

(GUILLAUME SEIGNAC - França-1870 - 1924)


Fala-me agora, que estou cansado,
agora, que já voltaste, e conheces o mundo,
de cada lado.


Fala-me como alguém que já sabe da vida
e da sua seiva mais tenebrosa
e que transporta sua alma partida.


Fala-me como se a morte amanhã chegasse
e pusesse a fria coroa da lua
sobre a tua face.


Fala-me e dize que me ouviste um dia,
e que estavas só, perdido, acabado,
e tiveste alegria.


Fala-me, enfim, como nunca no mundo
ninguém já falou a um irmão, a um amigo
- abre o teu coração até o fundo.


Para que eu morra com o contentamento
de que o meu amor não foi um dom perdido,
lágrima no mar, suspiro no vento.


Que se pode ainda amar como em sonhos antigos,
sem mãos e sem voz, sem olhos, sem passos,
além de glórias e perigos.


Fala-me como alguém que me viu tão de frente
que eu não posso saber se é o meu próprio retrato
num espelho clarividente.



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)

9 de abr. de 2010

Epigramas


I

À bela dama despojada
não lhe restava mais nada,
depois de batalhas ávidas.


Continuava, porém, tão bela,
que inveja dizia: “Àquela
ainda lhe restam as perolas...”


A bela dama despojada
não podia dizer nada.
(Não lhe restavam nem lagrimas.)


II


Não há rosto nenhum! E mesmo o meu, que importa?
E as mãos! – as mãos foram um desenho sem sentido.
Um dia sonhamos que existimos.
Vivemos desse sonho.
E dentro dele fomos tão desgraçados...


Quando recordaremos esse sonho sonhado?
Onde recordaremos esse sonho acabado?


Quem seremos, depois dessa antiga aventura,
e em que abismos de lembrança
despiremos, afinal, esta couraça tênue de vida,
esta opressão e esta fragilidade,
este martírio vago e perseverante da memória?


III


Sobre uma flor dormiríamos
e o vento nos dividiria com suas numerosas laminas.


Sobre uma flor. Sem rastros.
Sem espelho. Sem nome.
Ah! mas em que translúcido tempo?


IV


Não descerias em mim, porque a minha torrente
desmancharia o teu frágil momento
no rápido transito.


Fica só refletida, e as ondas que passarem
todas irão levando a ausência do teu rosto,
que será presença sem fim.


Não queiras ter a morte inglória dos encontros.
Mas a eterna, a profunda vida, no reflexo
que por onde passar te levará.



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)

7 de abr. de 2010

Epigrama n° 1


Pousa sobre esses espetáculos infatigáveis
uma sonora ou silenciosa canção:
flor do espírito, desinteressada e efêmera.


Por ela, os homens te conhecerão:
por ela, os tempos versáteis saberão
que o mundo ficou mais belo, ainda que inutilmente,
quando por ele andou teu coração.



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Viagem (1939)
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