23 de set. de 2010

Para os livros, cujo perfume

Para os livros, cujo perfume
de campo e verniz fascinava
meus olhos e meu pensamento,
não tenho tempo.


Para a flor, o linho, a ramagem,
a cor, que me arrastavam como
por um bosque múrmuro e denso,
não tenho tempo.


Nem para o mar, nem para as nuvens,
nem para a estrela que adorava
não tenho, não tenho, não tenho
não tenho tempo.


Canta o pássaro inútil ritmo,
os homens passam como sombras,
e o mundo é um largo e doido vento.
Não tenho tempo.


Longe, sozinha, arrebatada,
entro no circulo secreto
e a mim mesma não me pertenço.
Não tenho tempo.


Oh, tantas coisas, tantas coisas
que a alma servira com delicia...
(São nebulosas de silencio...)
Não tenho tempo.


Lagrimas detidas – meus olhos.
Sofro, porem já não batalho
entre saudade e esquecimento.
Não tenho tempo.


Aonde me levam? Que destino
governa a delirante vida?
Nem hei de morrer como penso.
Não tenho tempo.


Tão longe esforço, e tão penoso
- e agora fechado o horizonte.
Ó vida, inefável momento,
- não tenho tempo...



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)

Desenho


Fui morena e magrinha como qualquer polinésia,
e comia mamão, e mirava a flor da goiaba.
E as lágrimas me espiavam, entre os tijolos e as trepadeiras,
e as teias de aranha nas minhas árvores se entrelaçavam

Isso era um lugar de sol e nuvens brancas,
onde as rolas, à tarde, soluçavam mui saudosas...
O eco, burlão, de pedra, ia saltando,
entre vastas mangueiras que choviam ruivas horas.

Os pavões caminhavam tão naturais por meu caminho,
e os pombos tão felizes se alimentavam pelas escadas,
que era desnecessário crescer, pensar, escrever poemas,
pois a vida completa e bela e terna ali já estava.

Com a chuva caía das grossas nuvens, perfumosa!
E o papagaio como ficava sonolento!
O relógio era festa de ouro; e os gatos enigmáticos
fechavam os olhos, quando queriam caçar o tempo.

Vinham morcegos, à noite, picar os sapotis maduros,
e os grandes cães ladravam como nas noites do Império.
Mariposas, jasmins, tinhorões, vaga-lumes
moravam nos jardins sussurrantes e eternos.

E minha avó cantava e cosia. Cantava
canções de mar e de arvoredo, em língua antiga.
E eu sempre acreditei que havia música em seus dedos
e palavras de amor em minha roupa escritas.

Minha vida começa num vergel colorido,
por onde as noites eram só de luar e estrelas.
Levai-me aonde quiserdes! - aprendi com as primaveras
a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira.


Cecília Meireles
In Mar Absoluto

17 de set. de 2010

Personagem

(Paint by Caty Milner)

São os espelhos que me revelam:
Sem eles eu talvez não soubesse de mim.


Personagem incerto:
alguma dimensão, para demarcar-me.


Densidade suficiente para as quedas.
Às vezes, uma perplexa luz.


De nome não se fala, por desnecessário.
De origem não se sabe o que dizer.


Esta unidade insuficiente,
que não consegue ser sozinha.


Sim, conseguiria, se tudo não fossem agressões,
de dentro e de fora.


Que obediência, que disciplina é preciso aceitar?
Que genealogias se impõem?
Flutua-se num rio caudaloso e baço:
toas as gerações já passaram – e que souberam de proveitoso?
De onde provinham? Como se encadearam seus rostos?
Viveram suas obrigações. Que deixaram?
Tudo se perde na origem anônima,
Nessa negra fonte cega.


Que posso eu ter com essas vidas passadas,
se elas nada afinal têm com a minha?
Que somos todos um sangue?
Ah! cada um vive o seu sangue separadamente!



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)
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