30 de jun. de 2014

ALUNA



Conservo-te o meu sorriso
para, quando me encontrares,
veres que ainda tenho uns ares
de aluna do paraíso...

Leva sempre a minha imagem
a submissa rebeldia
dos que estudam todo o dia
sem chegar à aprendizagem...

_ e, de salas interiores,
por altíssimas janelas,
descobrem coisas mais belas,
rindo-se dos professores...

Gastarei meu tempo inteiro
nessa brincadeira triste;
mas na escola não existe
mais do que pena e tinteiro!

E toda a humana docência
para inventar-se um ofício
ou morre sem exercício
ou se perde na experiência...

Cecília Meireles,
in Vaga Música











26 de jun. de 2014

EIS A CASA






Eis a casa
menos que ar
imponderável,
no entanto é branca de camélia
e tem perfume de cal

Com seus corredores

O alpendre

As janelas uma a uma

Vê-se o mar. As montanhas. O trem passando
O gasômetro

Vêem-se as árvores por cima com suas flores

A casa imponderável

Mas de cimento madeira tijolos ferro vidro

A pintura prateada das grades cheira a óleo a fruta a luz

A água a pingar cheira a musgo,
soa metálica, trêmula
insetos pássaros líquidos
pequenas estrelas
clarins muito longe

Peitoris gastos de braços antigos
Sombras de borboletas

Eu sei quem comprou a terra
quem pensou nos desenhos
quem carregou as telhas

Passam legiões de formigas pelos patamares

Eu sei de quem era a casa
quem morou na casa
quem morreu

Eu sei quem não pôde viver na casa

É uma casa
com seus andares
suas escadas
seus corredores
varandas
aposentos
alvenaria
muros

imponderável.

Uma casa qualquer.
Cruz que se carrega.
Imponderávelmente, para sempre, às costas.


1961.

Cecília Meireles,
in Dispersos

24 de jun. de 2014

Província




Cidadezinha perdida
no inverno denso de bruma,
que é de teus morros de sombra,
do teu mar de branda espuma,

das tuas árvores frias
subindo das ruas mortas?
Que é das palmas que bateram
na noite das tuas portas?

Pela janela baixinha,
viam-se os círios acesos,
e as flores se desfolhavam
perto dos soluços presos.

Pela curva dos caminhos,
cheirava a capim e a orvalho
e muito longe as harmônicas
riam, depois do trabalho.

Que é feito da tua praça,
onde a morena sorria
com tanta noite nos olhos
e, na boca, tanto dia?

Que é feito daquelas caras
escondendo o seu segredo?
Dos corredores escuros
com paredes só de medo?

Que é feito da minha vida?
abandonada na tua,
do instante de pensamento
deixado nalguma rua?

Do perfume que me deste,
que nutriu minha existência
e hoje é um tempo de saudade,
sobre a minha própria ausência?


Cecília Meireles,
in Viagem







ANUNCIAÇÃO



Toca essa musica de seda, frouxa e trêmula
que apenas embala a noite e balança as estrelas noutro mar.

Do fundo da escuridão nascem vagos navios de ouro,
com as mãos de esquecidos corpos quase desmanchados no vento.

E o vento bate nas cordas, e estremecem as velas opacas,
e a água derrete um brilho fino, que em si mesmo logo se perde.

Toca essa musica de seda, entre areias e nuvens e espumas.

Os remos pararão no meio da onda, entre os peixes suspensos;
e as cordas partidas andarão pelos ares dançando à toa.

Cessará essa musica de sombra, que apenas indica valores de ar.
Não haverá mais nossa vida, talvez não haja nem o pó que fomos.

E a memória de tudo desmanchará sua dunas desertas,
e em navios novos homens eternos navegarão. 


Cecília Meireles
In: Viagem

17 de jun. de 2014

A moça pecadora apareceu-me de branco




A moça pecadora apareceu-me de branco
Toda de cetim branco bordado de vidro e prata.
A cintilante moça pecadora tinha um rosto
de quinze anos.

(Oh, como era belo teu rosto de quinze anos:
belos teus louros cílios,
teus olhos de água-marinha com raios dourados...

Tuas mãos de quinze anos, longas, límpidas, claras,
de unhas cor de perola, 
tuas mãos inocentes!)

E a moça ria-se entre arvores ondulantes,
e era uma ondina saída de algum rio,
e seu vestido era de luz e de água.

Quero encontrar essa moça, quero encontrá-la:
quero ver se ficou sobre ela um pouco desse brilho,
dessa alvura, dessa juventude, dessa castidade
com que me apareceu no sonho deslumbrante,
tênue como o luar:

1959


Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Sonhos (1950-1963)

16 de jun. de 2014

FLORISTA




Deixai passar pela margem da tarde
a velha florista
que levanta nos braços o fim das flores:
- imenso chapéu de ramos amontoados.

Vede os tristes cravos desfeitos,
e o lábio oscilante da ultima pétala de rosa.
Os lírios quase líquidos,
moles e túmidos,
prolongam densas lagrimas.

Deixai passar com o fim das flores,
com o fim da vida,
a velha florista,
de saia verde, de xale roxo, de meias grossas,
toda coberta de flores murchas,
de espesso pólen, de mortos espinhos
- canteiro deslizante,
a velha florista,
a escorregar para o ocaso,
lenta e sozinha,
sob os alamos amarelos,
ao longo de muros tão antigos,
como depois de uma grande festa,
de um culto de outrora.



Cecília Meireles
In: Poemas Italianos 


DISCURSO AO IGNOTO ROMANO



Não está no mármore o teu nome.
Nem teu perfil nem tua face
nada revelam do que foste.
Sabemos só que padeceste,
como acontece a qualquer homem;
que foste vivo e contemplaste
o que faz entre a alma e o horizonte,
e, com as grandes estrelas, viste
os vácuos do céu, na alta noite.
Cresceste como o bicho e a planta:
- mas sabendo que há amor e morte.
Houve um pensamento pousado
entre as rugas da tua fronte
e, dos teus olhos aos teus lábios,
vê-se da lagrima o recorte.

Por que foi talhado o teu rosto
nessa pedra pálida e suave,
ninguém se lembra. E as mãos que andaram
nessa escultura, ninguém sabe.
Poderoso foste? Do mundo 
que desejaste? Que alcançaste?
Na raiz das tuas pupilas,
que sonho existiu, na verdade?
Como pensavas que era a vida?
E de ti mesmo que pensaste?
Diante desta bela cabeça,
vendo-a de perfil e de face,
entre os teus olhos e os do artista,
qual terá sido a tua frase?

IGNOTO ROMANO esculpido
por ignota mão, preservando
no silencio da pedra o antigo
rosto, que encobre a ignota sorte,
parado entre sonho e suspiro,
sem gesto, sem corpo, sem roupas,
sem profissão nem compromisso,
sem dizer a ninguém mais nada
nem do amigo nem do inimigo. . .

(E todos os homens – ignotos –
com os olhos nesse claro abismo,
sem saberem que estão parados
ante um puro espelho polido!
Ignoto Romano – soletram. . .
E continuam seu caminho,
certos de terem algum nome,
com pena do desconhecido...)

Abril, 1953


Cecília Meireles
In: Poemas Italianos 


15 de jun. de 2014

Tomar a substancia do dia



Tomar a substancia do dia,
a sua mágica substancia,
e levantá-la como um vaso,
desenhando no seu cristal
desejo, deslumbramento, esperança
na rosa que não é apenas flor,
mas diagrama da perfeição.


E de novo recomeçar,
porque é sempre um novo dia,
e o cristal da sua substancia
foge entre os nossos dedos,
e amarga em nossa boca,
e é puro quartzo de lagrima
que se prepara e forma e quebra
para sempre, na eterna solidão.    



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)


Fragmento



Eu falava no mar como alguém que recorda
seus pais. E amava todo o aparelho naval:
- o grosso cheiro de óleo, o contorno da corda,
o arrastar da corrente -  e águas, e brisa e sal.


Eu pisava no cais com marítimo passo.
Invejava o molusco em líquen pelas quilhas.
E minha alma era um grito às gaivotas no espaço,
e paixão de encontrar cabos, recifes, ilhas.


Que me diz hoje o mar, e que me diz o vento,
que me diz esse amor, sem lugar para mim?
De tudo se desprende um triste pensamento.
No mais longe horizonte avisto o breve fim.


Tudo igual, em redor. Tudo, de qualquer lado,
preso no seu limite, em seu tempo, em seu luto.
E o mar que eu via, o mar eterno, continuado,
grande por ser sozinho, imortal, absoluto...?     



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)






Música matinal



A Onestaldo de Pennafort


Não me digam quem é
a dona que toca
por detrás da manhã
quase noite ainda
nesta franja de luar
do velho teclado
caminho de marfim
de pálidas Musas.

Ó Mozart de cristal
desfolhado à brisa
de orvalho e jasmim!

Cavalos tranqüilos
mascam trevos de som,
hastes de sustenidos
e fieiras de grãos
negros de semifusas.
Bebem a água do ar
E levantam nos olhos
as ruas do céu.

Não me digam quem é
a dona da sombra
imperativa e irreal.

Deixai que a cidade
encontre ao despertar
o passaro claro
que vem de suas mãos
e das nuvens à terra
abre asas de luz
e suspende em seu canto
a áurea rosa do sol. 


Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)

14 de jun. de 2014

O ELEFANTE


foto by Sebastião Salgado


O rugoso elefante pousa as patas cuidadosas nas pedras,
Pedras do imenso caminho, sinuoso e íngreme,
Entre as antigas muralhas e as altas frondes,
E vai subindo devagar para o palácio- fatigado patriarca.

O rugoso elefante tem apenas um velho manto amarelo,
Manto amarelo esgarçado e pobre, que não se parece
Com as coberturas soberbas, os brocados que outrora
Envolveram seus ancestrais, portadores de palanquins.

O rugoso elefante é um grande mendigo, e atrás dele vão e vêm
As crianças tênues, de dentes claros, que agitam raminhos
E com voz de brincadeira vão dizendo aos viajantes:
“Bakhshish! Bakhshish!Bakhshish!”
Para ganharem alguma pequena moeda negra.

Vão cantando assim. E seus dentes são mesmo pequenas pérolas,
E o elefante protege as crianças com sua sombra,
Levando-as na tromba, ri com os olhos, é um avô complacente,
Que vai morrendo entre bondades, alegrias, pobreza, lembranças.


Cecilia Meireles
In Poemas Escritos na Índia






5 de jun. de 2014

16




Sono sobre a chuva
que, entre o céu e a terra,
tece a noite fina.

Tece-a com desenhos
de amigos que falam,
de ruas que voam,
de amor que se inclina,

de livros que se abrem,
de face incompleta
que, inerme, deplora
com palavras mudas
e não raciocina...

Sobre a chuva, o sono:
tão leve, que mira
todas as imagens
e ouve, ao mesmo tempo,
longa, paralela,
a canção divina

dos fios imensos
que, nos teares de água,
entre o céu e a terra,
o tempo separa 
e a noite combina.


Cecília Meireles
In Metal Rosicler

3 de jun. de 2014

9



Falou-me o afinador de planos, esse
que mensalmente escuta cada nota
e olha para os bemóis e sustenidos
ouvindo e vendo coisa mais remota.
E estão livres de engano os seus ouvidos
e suas mãos que em cada acorde acordam
os sons felizes de viverem juntos.

“Meu interesse é de desinteresse:
pois musica e instrumento não confundo,
que afinador apenas sou, do piano,
a letra da linguagem desse mundo
que me eleva a conviva sobre-humano.
Oh! que Física nova nesse plano
para outro ouvido, sobre outros assuntos..”  



Cecília Meireles
in Metal Rosicler
Seja bem-vindo. Hoje é