29 de set. de 2014

Chuva




Sobre as casas fechadas, a chuva.
Sobre o sono dos homens, a chuva.
Sobre os mortos inúmeros, a chuva.

A chuva noturna sobre as arvores.
A chuva noturna sobre os templos
A chuva noturna sobre o mar.

Sobre a solidão deste mundo, a chuva.
A solidão da chuva, na solidão.

Abril, 1954

Cecília Meireles
In: Poesia Completa

26 de set. de 2014

LUA




 Mesmo as imagens familiares têm um instante de nascimento.
Céus sem pássaros
são estranhos e fechados.
A noite fica à janela, ao luar,
e a cidade está mergulhada nas lágrimas dos grilos.

E ao ver que um caminho espera ainda um passante,
e a lua
em cima da baioneta do cipreste,
dizes: Deus, tudo isso ainda existe?
Pode-se ainda, em voz baixa, perguntar como estão passando?

A água das poças olha-nos e reflete-nos.
A árvore descansa
com seus brincos vermelhos.
Nunca, meu Deus, arrancarão de mim
o sofrimento dos teus grandes brinquedos.

Nathan Altermann (l.910)
in Poesia de Israel
Tradução: Cecília Meireles

25 de set. de 2014

O tempo seca o amor




O tempo seca a beleza,
seca o amor, seca as palavras.
Deixa tudo solto, leve,
desunido para sempre
como as areias nas águas.

O tempo seca a saudade,
seca as lembranças e as lágrimas.
Deixa algum retrato, apenas,
vagando seco e vazio
como estas conchas das praias.

O tempo seca o desejo
e suas velhas batalhas.
Seca o frágil arabesco,
vestígio do musgo humano,
na densa turfa mortuária.

Esperarei pelo tempo
com suas conquistas áridas.
Esperarei que te seque,
não na terra, Amor-Perfeito,
num tempo depois das almas.

Cecília Meireles, 
in "Retrato Natural", 1949.

16 de set. de 2014

"ERRATA"


Depois de impresso, reparo
que, embora cego, este espelho
levanta uma sobrancelha
a apontar meu erro claro

(Os espelhos sem reflexo
guardarão sempre algum brilho
para vírgula, ou cedilha
ou acento circunflexo...)

Como porém, cada dia
vai sendo a vidadiversa,
e, quanto mais fiel, o verso,
mais infiel, a ortografia,

pode ser que, brevemente,
o espelho, nessa moldura,
já não seja cego e impuro,
mas certo e clarividente...

Cecília Meireles
Obra Poética - 1977

14 de set. de 2014

CAMPO




Vem ver o dia crescer entre o chão e o céu,
o aroma dos verdes campos ir sendo orvalho na alta lua.

Os bois deitados olham a frente e o longe, atentamente,
aprendendo alma futura nas harmonias distribuídas

O mesmo sol das terras antigas lavra nas pedras estrelas claras.
Nem as nuvens se movem.Nem os rios se queixam.

Estão deitados, mirando-se,dos seus opostos lugares,
e amando-se em silêncio, como esposos separados.

Neste descanso imenso, quem te dirá que viveste em tumulto,
e houve um suspiro em teu lábio, ou vaga lágrima em teus dedos?

Morreram as ruas desertas e os ávidos habitantes
ficaram soterrados pelas paixões que os consumiam.

A brisa que passa vem pura, isenta, sem lembranças.
Tece carícia e música nos finos fios do arrozal.

Em tua mão quieta, pousarão borboletas silenciosas.
Em teu cabelo flutuarão coroas trêmulas de sombra e sol.

Tão longe, tão mortos,jazem os desesperos humanos!
E os corações perversos não merecem o convívio serenos das plantas.

Mas teus pés andarão por aqui entre flores azuis,
e o perfume te envolverá como um largo céu.

O crepúsculo que cobre a memória, o rosto, as árvores,
inclinará teu corpo, docemente, em sua alfombra.

Acima do lodo dos pântanos, verás desabrochar o vôo branco das garças.
E, acima do teu sono, o vôo sem tempo das estrelas.


Cecília Meireles
In Mar Absoluto e Outros Poemas
 

13 de set. de 2014

VISITA DA CHUVA



Estas altas árvores
são umas harpas verdes
com cordas de chuva
que tange o vento.

Vêm os sons mais claros
da amendoeira amarela,
pontuados na palma
das fortes folhas virentes.

Os sons mais frágeis nascem
na fronde da acácia leve,
com frouxos cachos de flores
e folhinhas paralelas.

Os sons mais graves escorrem
das negras mangueiras antigas,
de grosso, torcidos galhos,
franjados de parasitas.

Os sons mais longínquos e vagos
vêm dos finos ciprestes:
chegam e apagam-se, nebulosos,
desenham-se e desaparecem ...

Cecília Meireles
In Mar Absoluto e Outros Poemas (1945)





12 de set. de 2014

NOITE




Tão perto!
Tão longe!
Por onde
é o deserto?
Às vezes,
responde,
de perto,
de longe.
Mas depois
se enconde.
Somos um
ou dois?
Às vezes,
nenhum. 
E em seguida,
tantos!
A vida
transborda
por todos
os cantos.
Acorda
com modos
de puro
esplendor.
Procuro
meu rumo:
horizonte
escuro:
um muro
em redor.
Em treva
me sumo.
Para onde
me leva?

Pergunto a Deus se estou viva,
se estou sonhando ou acordada.
Lábio de Deus! – Sensitiva
tocada.

Cecília Meireles
In Mar Absoluto e Outros Poemas (1945)


Houve um poema



Houve um poema,
entre a alma e o universo.
Não há mais.
Bebeu-o a noite, com seus lábios silenciosos.
Com seus olhos estrelados de muitos sonhos.

Houve um poema:
Parecia perfeito.
Cada palavra em seu lugar,
como as pétalas nas flores
e as tintas no arco-íris.
No centro, mensagem doce
E intransmitida jamais.

Houve um poema:
e era em mim que surgia, vagaroso.
Já não me lembro, e ainda me lembro.
As névoas da madrugada envolvem sua memória.
É uma tênue cinza.
O coral do horizonte é um rastro de sua cor.
Derradeiro passo.

Houve um poema.
Há esta saudade.
Esta lágrima e este orvalho - simultâneos -
que caem dos olhos e do céu.



Cecília Meireles,
in Metal Rosicler 


1.o MOTIVO DA ROSA




 Vejo-te em seda e nácar,
e tão de orvalho trêmula, 
que penso ver, efêmera,
toda a Beleza em lágrimas
por ser bela e ser frágil.


Meus olhos te ofereço:
espelho para a face
que terás, no meu verso,
quando, depois que passes,
jamais ninguém te esqueça.


Então, de seda e nácar,
toda de orvalho trêmula,
serás eterna. E efêmero
o rosto meu, nas lágrimas
do teu orvalho. . . E frágil.  



Cecilia Meireles
In: Mar Absoluto


IRREALIDADE



 
Como um sonho
aqui me vedes:
água escorrendo
por estas redes

de noite e dia.
A minha fala


parece mesmo
vir do meu lábio
e anda na sala
suspensa em asas
de alegoria.


Sou tão visível
que não se estranha
o meu sorriso.
E com tamanha
clareza pensa
que não preciso
dizer que vive
minha presença.


E estou de longe,
compadecida.
Minha vigília
é anfiteatro
que toda a vida
cerca, de frente.
Não há passado
nem há futuro.
Tudo que abarco
se faz presente.


Se me perguntam
pessoas, datas,
pequenas coisas
gratas e ingratas,
cifras e marcos
de quando e de onde,
-a minha fala
tão bem responde
que todos crêem
que estou na sala,

E ao meu sorriso
vós me sorris. . .
Correspondência
do paraíso
da nossa ausência
desconhecida
e tão feliz!


Cecilia Meireles
In: Mar Absoluto


NOTURNO




Brumoso navio
o que me carrega
por um mar abstrato.
Que insigne alvedrio
prende à idéia cega
teu vago retrato?


A distante viagem
adormece a espuma
breve da palavra:
-máquina de aragem
que percorre a bruma
e o deserto lavra.


Ceras de mistério
selam cada poro
da vida entregada.
Em teu mar, no império
de exílio onde moro,
tudo é igual a nada.


Capitão que conte
quem és, porque existes,
deve ter havido.
Eu? – bebo o horizonte. . .
Estrelas mais tristes.
Coração perdido.


Sonolentas velas
hoje dobraremos:
-e a nossa cabeça.
Talvez dentro delas
ou nos duros remos
teu NOME apareça.



Cecilia Meireles
In: Mar Absoluto

 [Arte by Christian Schloe]

10 de set. de 2014

Acalanto



Dorme que eu penso.
Cada qual assim navega
pelo seu mar imenso.

Estarás vendo.Eu estou cega.
Nem te vejo nem a mim.
No teu mar, talvez se chega.
Este, não tem fim.

Dorme, que eu penso.
Que eu penso nesse navio
clarividente em que vais.
Mensagens tristes lhe envio
Pensamentos...- nada mais.

Cecília Meireles
In Mar Absoluto e outros poemas

9 de set. de 2014

CHUVA NA MONTANHA



Como caíram tantas águas,
nublou-se o horizonte,
nublou-se a floresta,
nublou-se o vale.

E as plantas moveram-se azuis
dentro da onda que as toldava.

Tudo se transformou em cristal fosco:
as jaqueiras cansadas de frutos,
as palmeiras de leque aberto,
e as mangueiras com suas frondes
de arredondadas nuvens negras superpostas.

O arco-íris saltou somo serpente multicor
nessa piscina de desenhos delicados.

Cecília Meireles
in Mar Absoluto

Seja bem-vindo. Hoje é