28 de fev. de 2011

Canção


Era um rosto
na noite larga
de altas insônias
iluminada.


Serás um dia
vago retrato
de quem se diga:
“o antepassado”.


Eras um poema
cujas palavras
cresciam dentre
mistério e lagrimas.


Serás silencio,
tempo sem rastro,
de esquecimentos
atravessado.


Disso é que sofre
a amargurada
flor da memória
que ao vento fala.



Cecília Meireles
In: Retrato Natural

Cantata vesperal


Cerrai-vos, olhos, que é tarde, e longe,
e acabou-se a festa do mundo:
começam as saudades hoje.


Longos adeuses pelas varandas
perdem-se; e vão fugindo em mármore
cascatas céleres de escadas.


Pelos portões não passam mais sombras,
nem há mais vozes que se entendam
nas distancias que o céu desdobra.


As ruas levam a mares densos.
E pelos mares fogem barcas
sem esperanças de endereços.


Cecília Meireles
In: Retrato Natural

16 de fev. de 2011

Inscrição


Nem sei se é lua, se apenas um rastro de nuvem
no azul triste do dia.


Nem sei se é flor, se uma estrela caída da chuva
no jardim desfolhado.


Nem sei se é meu, se de outrem, o acenar da loucura
com mãos de poesia.


Nem sei que dizem, ou que responda, se perguntaram...
que o presente é passado.



Cecília Meireles
In: Retrato Natural

Improviso


Eu mesma sou a culpada
dos malefícios alheios.
A quem não podia nada
eu é que fui dar os meios
para me ver maltratada.


Vai correndo, fonte pura,
não mires quem te bebeu.
Não queiras ver a criatura
que se nutriu do que é teu.
Salva-te da desventura!


Cecília Meireles
In: Retrato Natural

14 de fev. de 2011

Timidez


Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve...

— mas só esse eu não farei.

Uma palavra caída
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras mais distantes...

— palavra que não direi.

Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponho vestidos noturnos,

— que amargamente inventei.

E, enquanto não me descobres,
os mundos vão navegando
nos ares certos do tempo,
até não se sabe quando...

— e um dia me acabarei.


Cecília Meireles
De 'Viagem'

13 de fev. de 2011

Os dois lados do realejo


Pelo lado de cima,
o realejo é como um altar barroco,
de colunas douradas, flores grandiosas,
conchas crespas, abraço de volutas e fitas.


Pelo lado de cima,
o realejo é um pátio mágico,
onde cantam os pássaros e jorram os repuxos,
com requebros de dança
e festas de amor.


E das altas janelas voam para o realejo
pequenas moedas cintilantes,
libélulas douradas,
borboletas de prata,
pedacinhos de sol
gravitando na musica.


Do lado de baixo, a rodar a manivela,
há um homem sem emprego,
que alegra a rua.
mas tem os olhos graves.


Uns olhos que viram rios de sangue
em redor daquelas casas.
Rios de guerra,
onde boiou sua gente fuzilada e sem culpa.



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Viagem (1939)

10 de fev. de 2011

Desventura


Tu és como o rosto das rosas:
diferente em cada pétala.


Onde estava o teu perfume? Ninguém soube.
Teu lábio sorriu para todos os ventos
e o mundo inteiro ficou feliz.


Eu, só eu, encontrei a gota de orvalho que te alimentava,
como um segredo que cai do sonho.


Depois, abri as mãos, - e perdeu-se.


Agora, creio que vou morrer.



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Viagem (1939)
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