26 de jul. de 2010

'Infelizmente, falharam as fotografias'


Infelizmente, falharam as fotografias,
e, assim, não me poderás ver diante do asceta
de roupa vermelha, à sombra do arco.


E assim não poderá ler na sua face:
“Que dizer, para que se entendesse...?


Nem poderás ler na minha:
“Tudo entendido. Não se precisa dizer nada.”


Mas as fotografias falharam.
E aquele momento já fugiu para trás, no caminho do tempo.
Aquelas duas sombras foram ficando cada vez mais longe.
A compreensão, que perdura, é sem retrato.



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Viagem (1939)

22 de jul. de 2010

"I"


Não me adianta dizer nada,
Sabiá,
porque não nos entendemos.
Mas essa melancolia
da tua queixosa toada,
Sabiá,
bate no meu coração
como batem n ‘água os remos
que nunca mais voltarão.


O que dizes quando cantas,
Sabiá,
tão bem se ajusta ao que penso,
que mais prefiro escutar-te.
Minhas tristezas são tantas,
Sabiá,
que já nem sei quantas são.
Como é duro, negro, extenso,
o campo da ingratidão!


Não sinto mais no meu peito,
Sabiá,
força para aquele verso
com que outrora me explicava:
e por isso me deleito,
Sabiá,
força para aquele verso
com que outrora me explicava:
e por isso me deleito,
Sabiá,
quando te ouço... Entenderão
os ouvidos do universo
nossa comum solidão?


Cecília Meireles
In: Canções (1956) – Ciclo do Sabiá

"II"


Vi descer a tempestade,
Sabiá,
sobre nuvens tenebrosas.
Os homens, soltos, corriam,
Sabiá...
(De onde lhes vem tal pavor?)
- Presas morriam as rosas,
em seu destino de flor.


Nessa densa tarde escura,
Sabiá,
entre as batalhas do vento,
escutei pela montanha
tua voz tranqüila e pura,
Sabiá,
- perfeita imagem do amor
em cristal de pensamento:
grande, claro e sofredor.


Debrucei-me no ar selvagem,
Sabiá,
para ouvi-la, tão serena,
sem medo do fim do mundo,
proclamar sua mensagem,
Sabiá.


Levarei para onde for
dois perfis da mesma pena:
meu silencio, teu clamor.



Cecília Meireles
In: Canções (1956) – Ciclo do Sabiá

"III"


E é de novo madrugada,
Sabiá.
Semana sobre semana,
tu, que cantas, serás sempre
o mesmo que ouço, encantada?
Sabiá,
recolho todos os ais
da tua voz sobre-humana,
- mas não sei por onde vais!


E não sei, pois não te avisto,
Sabiá,
Mas, embora te avistasse,
não te reconheceria.
E eu, quem sou? por onde existo?
Sabiá,
não se encontrarão jamais
tua voz, e minha face,
quase sobrenaturais...


Por quantos remotos dias,
Sabiá,
nossos vagos descendentes
repetirão este jogo,
com suas alegorias?
Sabiá,
de que servem tais sinais?
Que anúncios clarividentes
podem ter vozes mortais?



Cecília Meireles
In: Canções (1956) – Ciclo do Sabiá

"IV"


Já não há mais dias novos,
Sabiá...
O mundo já se acabou.
Não há rios, não há montes,
nem luzes nos horizontes.
Morreram terras e povos,
Sabiá...
(Quem te escutou?)


Plumoso, pequeno, frio,
Sabiá,
teu corpo em que areia jaz?
Que foi mundo, sol e terra,
amor, pensamento, guerra,
morte, coração vazio,
Sabiá?
Não os saberás.


E tu, quem foste, quem eras,
Sabiá,
que não se explica, também?
- Que somos, além dos ossos
e dos terrenos destroços,
e imaginarias quimeras,
Sabiá,
Quem somos? quem?



Cecília Meireles
In: Canções (1956) – Ciclo do Sabiá

18 de jul. de 2010

'Sobre um passo de luz outro passo de sombra'


Sobre um passo de luz outro passo de sombra.
Era belo não vir; ter chegado era belo.
E ainda é belo sentir a formação da ausência.

Nada foi projetado e tudo acontecido.
Movo-me em solidão, presente sendo e alheia,
com portas por abrir e a memória acordada.

A acordada memória! esta planta crescente
com mil imagens pela seiva resvalantes,
na noite vegetal que é a mesma noite humana.

Vejo-me longe e perto, em meus nítidos moldes,
em tantas viagens, tantos rumos prisioneira,
a construir o instante em que direi teu nome!

Que labirintos bebem meu rosto?


Cecilia Meireles
in 'Solombra'

11


Chuva fina,
matutina,
manselinho orvalho quase:
névoa tênue sobre a selva,
pela relva,
desdobrada, etérea gaze.

Chuva fina,
matutina,
o pardal de úmidas penas,
a folhagem e a formosa
clara rosa,
sonham que és seu sonho, apenas.

Chuva fina
matutina,
pelo sol evaporada,
como sonho pressentida
e esquecida
no clarão da madrugada.

Chuva fina,
matutina:
brilham flores, brilham asas
brilham as telhas das casas
em tuas águas velidas
e em teu silêncio brunidas...

Chuva fina,
matutina,
que te foste a outras paragens.
Invisível peregrina,
clara operária divina,
entre limpidas viagens.

Cecília Meireles
in Metal Rosicler

9 de jul. de 2010

"Maldição'


Hoje é tarde para os desejos,
e nem me interessa mais nada...
Cheguei muito depois do tempo
em que se pode ouvir dizer: «Oh! minha amada...»

O mar imóvel dos teus olhos
pode estar bem perto, e defronte.
Mas nem navega as horas
nem se cuida mais de horizonte.

Durmo com a noite nos meus braços,
sofrendo pelo mundo inteiro.
O suspiro que em mim resvala
bem pode ser, a cada instante, o derradeiro.

Morrer é uma coisa tão fácil
que todas as manhãs me admiro
de ter o sono conservado
fidelidade ao meu suspiro.

E pergunto: «Quem é que manda
mais do que eu sobre a minha vida?
Neste mar de só desencanto,
que sereia murmura uma canção desconhecida?

E em meus ouvidos indiferentes,
alheios a qualquer vontade,
que rostos vão reconhecendo
os passeios da eternidade?

Perto do meu corpo estendido,
náufrago inerte de sombras e ares,
quem chegará, desmanchando secretos níveis?
Serás tu? - para me levares...»

(Vejo a lágrima que escorre
por cima da minha pena.
Ai! a pergunta é sempre enorme,
e a resposta, tão pequena...)

Cecília Meireles
In: ‘Viagem’

5 de jul. de 2010

Não sei distinguir no céu as varias constelações


Não sei distinguir no céu a varias constelações:
não sei os nomes de todos os peixes e flores,
nem dos rios nem das montanhas:
caminho por entre secretas coisas,
a cada lugar em que meus olhos pousam,
minha boca dirige uma pergunta.


Não sei o nome de todos os habitantes do mundo.
nem verei jamais todos os seus rostos,
embora sejam meus contemporâneos.


Não, não sei, na verdade, como são em corpo e alma
todos os meus amigos e parentes.
Não entendo todas as coisas que dizem,
não compreendo bem de que vivem, como vivem,
como pensam que estão vivendo.


Não me conheço completamente,
só nos espelhos me encontro,
tenho muita pena de mim.


Não penso todos os dias exatamente
do mesmo modo.
As mesmas coisas me parecem a cada instante diversas.
Amo e desamo, sofro e deixo de sofrer,
ao mesmo tempo, nas mesmas circunstancias.


Aprendo e desaprendo,
esqueço e lembro,
meu Deus, que águas são estas onde vivo,
que ondulam em mim, dentro e fora de mim?


Se dizem meu nome, atendo por habito.
Que nome é o meu?
Ignoro tudo.


Quando alguém diz que sabe alguma coisa,
fico perplexa:
ou estará enganado, ou é um farsante
- ou somente eu ignoro e me ignoro e me ignoro desta maneira?


E os homens combatem pelo que julgam saber.
E eu, que estudo tanto,
inclino a cabeça sem ilusões,
e a minha ignorância enche-me de lagrimas as mãos.


1960



Cecília Meireles
In: O Estudante Empírico
Seja bem-vindo. Hoje é