29 de jun. de 2009

VIOLA



Minha cantiga servia
para dizer coisas densas
que apenas eu mesmo ouvia.

Foi a palavra quebrada
por muito encontro guerreiro:
ferozes golpes de espada
na tênue virtude alada
de um coração prisioneiro.

Cantar não adianta nada.

Explicar-se não se explica.

Por entre coisas imensas,
torto e ignorado se fica.

Com pensativos vagares,
de fundos poços me abeiro:
chorar é muito mais fácil
e talvez mais verdadeiro.

Cecília Meireles
in Mar Absoluto

DOMINGO NA PRAÇA



Em três altas ondas a fonte desata
na negra bacia
suas longas madeixas de prata.

Entre o lago e as flores, desliza alegria
nas areias quietas:
cantos de ciranda, sapatinhos brancos,
aros velozes de bicicletas.

Depois dos canteiros, dois a dois, sentados,
falando em sonho, sonhando acordados,
os namorados enamorados
dizem loucuras, pelos bancos.

Ah, Deus, - e a grande lua antiga,
que volta de viagens, saindo do oceano,
ouve a alegria, ouve a cantiga,
ouve a linguagem de puro engano,

ouve a fonte que desata
na negra bacia
novas madeixas de prata ...

As águas não eram estas,
há um ano, há um mês, há um dia ...
Nem as crianças, nem as flores,
nem o rosto dos amores ...

onde estão águas e festas
anteriores ?

E a imagem da praça, agora,
que será, daqui a um ano,
a um mês, a um dia, a uma hora ? ...


Cecília Meireles
in Mar Absoluto

SENSITIVA



No cedro e na rosa,
o gesto da brisa.
De joelhos, na noite,
colhíamos juntos
a sensitiva.

Teu lábio formava
uma lua fina.
Mas tua figura,
na sombra, a – a folhagem
muda bebia.

Junto à áspera terra,
tua mão e a minha
se encontraram sob
o pânico súbito
da sensitiva.

Que espasmo de nácar
pela seiva aflita!
Nem rosa nem cedro
souberam da ausência
da sensitiva.

Aonde levaremos
esta dolorida
planta frágil, se
tua mão se apaga
em lírio e cinza?

Se teu rosto esparso
já não se adivinha,
e teu lábio é, agora,
na manhã que chega,
puro enigma?

Voa dos meus olhos
a noite vivida.
Na areia dos sonhos,
somente o desenho
da sensitiva.


Cecília Meireles
in Mar Absoluto

PEDIDO



Armem rede entre as estrelas,
para um descanso secular!
Os conhecidos – esquecê-los.
E os outros, nem imaginar.
Armem a rede!

Chamem o vento, um grande vento
aéreo leão, para amarrar
sua juba de esquecimento
a esta rede, entre Deus e o mar.
Chamem o vento!

Não falem nunca mais daquela
que oscila, invisível, pelo ar.
Não digam se foi triste ou bela
sua vocação de cantar!
Não falem nela.

Cecília Meireles
in Mar Absoluto

OS MORTOS



Creio que o morto ainda tinha chorado, depois da morte:
enquanto os pensamentos se desagregavam,
depois do coração se acostumar a ter parado.

Creio que sim, porque uma gota de choro havia entre a pálpebras,
feita de força já tão precária que nem pudera ir mais além,
que não correra, nem correria,
e que também não secava.

E que ninguém teria tido a coragem desumana de enxugar.

Por que foi que o morto chorou?
Que lembrança de sua vida chegaram até ali, reduzido àquilo?

Sua vida não foi boa nem má:
foi como a dos homens comuns,
a dos que não fizeram nenhum destino: aceitaram qualquer ...
Dentro dele se debateram todas as coisas,
e de dentro dele todas as coisas saíram repercutindo sua incerteza.

Creio que o morto chorou depois da morte.
Chorou por não ter sido outro.
(É só por isso que se chora.)

Mas sobre seus olhos havia uns outros, mais infelizes,
que estavam vendo, e entendendo, e continuavam sem nada.
Sem esperança de lágrima.
Recuados para um mundo sem vibração.
Tão incapazes de sentir que se via o tempo de sua morte.
Antiga morte já entrada em esquecimento.
Já de lágrimas secas.

E no entanto, ali perto, contemplando o morto recente.
Como se ainda fosse vida.

Maternal, porque o precedeu. Apenas, sem poder sofrer,
- de tanto saber e de tanto ter sido.


Cecília Meireles
in Mar Absoluto

26 de jun. de 2009

IDÍLIO



Como eu preciso de campo,
de folhas, brisas, vertentes,
encosto-me a ti, que és árvore,
de onde vão caindo flores
sobre os meus olhos dormentes.

Encosto-me a ti, que és margem
de uma areia de silêncios
que acompanha pelo tempo
verdes rios transparentes;
tua sombra, nos meus braços,
tua frescura, em meus dentes.

Nasce a lua nos meus olhos,
passa pela minha vida...
- e, tudo que era, resvala
para calmos ocidentes.
Caminhos de ar vão levando
pura e nua essa que andava
com as roupas mais diferentes.

Olham pássaros, das nuvens,
entre a luz dos mundos firmes
e a das estrelas cadentes.
E o orvalho da sua música
vai recobrindo o meu rosto
com um tremor que eu conhecia
nos meus olhos já levados,
idos, perdidos, ausentes...

(Leve máscara de pérolas
na minha face não sentes?)


Cecília Meireles
in livro Vaga Música

23 de jun. de 2009

Serenata



Dize-me tu, montanha dura,
onde nenhum rebanho passe,
de que lado na terra escura
brilha o nácar de sua face.

Dize-me tu, palmeira fina,
onde nenhum pássaro canta,
em que caverna submarina
seu silêncio em corais descansa.

Dize-me tu, ó céu deserto,
dize-me tu se é muito tarde,
se a vida é longe e a dor é perto
e tudo é feito de acabar-se!

Cecília Meireles
in; Retrato Natural

Cantata Vesperal



Cerrai-vos, olhos, que é tarde, e longe,
e acabou-se a festa do mundo:
começam as saudades hoje.

Longos adeuses pelas varandas
perdem-se; e vão fugindo em mármore
cascatas céleres de escadas.

Pelos portões não passam mais sombras,
nem há mais vozes que se entendam
nas distâncias que o céu desdobra.

As ruas levam a mares densos.
E pelos mares fogem barcas
sem esperanças de endereços.

Cecília Meireles
in; Retrato Natural

20 de jun. de 2009

Palavras



Espada entre flores,
rochedo nas águas,
assim firmes, duras,
entre as coisas fluidas,
fiquem as palavras,
as vossas palavras.

Pois se por acaso
dentro dos sepulcros
acordassem as almas
e em sonhos confusos
suspirassem rumos
de histórias passadas
e houvesse um tumulto
de ânsias e de lágrimas,

– lembrassem as lágrimas
caídas no mundo
nas noites amargas
cercadas dos muros
das vossas palavras.
Todas as palavras.

Nos espelhos puros
que a memória guarda,
fique o rosto surdo,
a música brava
do humano discurso.
De qualquer discurso.

Só de morte exata
sonharão os justos,
saudosos de nada,
isentos de tudo,
pascendo auras claras,
livres e absolutos,
nos campos de prata
dos túmulos fundos.

No meio das águas
das pedras, das nuvens,
verão as palavras:
estrelas de chumbo,
rochedos de chumbo.
A cegueira da alma.
O peso do mundo.

Adeus, velhas falas
E antigos assuntos!


Cecília Meirels
in Retrato Natural

19 de jun. de 2009

As valsas


(Jack Vettriano)


Como se desfazem as valsas
por longos pianos aéreos
que a noite envolve em suas chuvas!
Que ternura nas nossas pálpebras,
pelo exílio suave dos gestos
e dos perfis de antigas músicas!

Os marfins opacos recordam,
com uma graça desiludida,
a aura da morta formosura.
Gente de sonho, sem memória,
entrelaçada, conduzida
por salões de esperança e dúvida.

E eram tão leves, nessas valsas!
E levavam lágrimas entre
seus colares e suas luvas!
E falavam de suas mágoas,
valsando, e delicadamente,
com a voz presa e as pestanas úmidas!

Ah, tão longe, tão longe, as salas...
Levados os lustres e as vidas,
o amor triste, a humilde loucura...
Ficaram apenas as valsas,
girando cegas e sozinhas,
sem os habitantes da música!


Cecília Meireles
in Retrato Natural

Canção quase triste



Brilhou a rosa
no espinhoso galho.
Quem a viu? Ninguém.

Nuvens muito altas
lágrimas de orvalho
deram-lhe: – de além.

Seca os teus olhos,
no amargo trabalho,
que a noite já vem.

Vê-te a ti mesmo,
sê teu agasalho,
pobre Pero Sem.


Cecília Meireles
in Retrato Natural

Apresentação



Aqui está minha vida – esta areia tão clara
com desenhos de andar dedicados ao vento.

Aqui está minha voz – esta concha vazia,
sombra de som curtindo o seu próprio lamento.

Aqui está minha dor – este coral quebrado,
sobrevivendo ao seu patético momento.

Aqui está minha herança – este mar solitário,
que de um lado era amor e, do outro, esquecimento.


Cecília Meireles
In Retrato Natural

AMOR PERFEITO



Suas cores são as de outrora,
com muito pouca diferença:
o roxo foi-se quase embora,
o amarelo é vaga presença.
E em cada cor que se evapora
vê-se a luz do jardim suspensa.

Tão fina foi a vida sua,
tão fina é a morte em que descansa!
Mais transparente do que a lua,
mais do que as borboletas mansa!
Tanto o seu perfil atenua
que, em peso, é menos que a lembrança.

Veludo de divinos teares,
hoje seda seca e abolida,
preserva os vestígios solares
de que era feita a sua vida:
frágil coração, capilares
de circulação colorida.

Se o levantar entre meus dedos,
pólen de tardes e sorrisos
cairá com tímidos segredos
de tempos certos e imprecisos.
Ó cinco pétalas, ó enredos
de sentimentais paraísos!

Mas de leve gota pousada
no veludo, - mole diamante
que foi a resposta da amada,
que foi a pergunta do amante –
dela não se verá mais nada:
perdeu-se no vento inconstante.


Cecília Meireles
in Mar Absoluto

16 de jun. de 2009

Rosa



Vim pela escada de espinhos.
(Mais durável esse esforço que o esplendor.)

Depois de ascensão tão longa,
qualquer vento, qualquer chuva
converte-me em queda e pó.

Quando se vê a coroa
que eu trazia, já não sou.

Entre espinhos e derrotas,
qual é meu tempo de flor?


Cecília Meireles
Dispersos -1960-

15 de jun. de 2009

FUTURO


É preciso que exista, enfim, uma hora clara,
depois que os corpos se resignam sobre as pedras
como máscaras metidas no chão.

Por entre as raízes, talvez se veja, de olhos fechados,
como nunca se pode ver, em pleno mundo,
cegos que andamos de iluminação.

Perguntareis: “Mas era aquilo, o teu silêncio?”
Perguntareis: “Mas era assim, teu coração?”

Ah, seremos apenas imagens inúteis, deitadas no barro,
do mesmo modo solitárias, silenciosas,
com a cabeça encostada à sua própria recordação.


Cecília Meireles
in Mar Absoluto

SOLIDÃO


Imensas noites de inverno,
com frias montanhas mudas,
e o mar negro, mais eterno,
mais terrível, mais profundo.

Este rugido das águas
é uma sem forma:
sobe rochas, desce fráguas,
vem para o mundo, e retorna...

E a névoa desmancha os astros,
- terra e céu - guardando nome.
E os seus longos sonhos sábios
geram a vida dos homens.

Geram os olhos incertos,
por onde descem os rios
que andam nos campos abertos
da claridade do dia.


Cecília Meireles
in: Viagem

PÁSSARO AZUL



Tua estirpe habitara alcândoras divinas.
Com os pés de prata e anil desceste antigos tempos.
E em minhas mãos pousaste, e o silêncio explicou-se,
por tua voz, que era de nunca e era de sempre.

Nomes de estrelas vinham sobre as tuas asas,
e era o teu corpo uma ampulheta pressurosa.
Entre as nuvens procuro o último azul que foste ...
Mas, de tanto saber, nada mais se deplora.

Como te penso tanto, e tão longe procuro
tua música além das nuvens, não te esqueças
que posso estar um dia, em lágrima extraviada,
pólen do céu brilhando entre os altos planetas.

Mas não voltes aqui, pois é pesado e triste
o humano clima, para o teu destino aéreo.
Eu mal te posso amar, com o sonho do meu corpo,
condenado a este chão e sem gosto terrestre.


Cecília Meireles
in Mar Absoluto

8 de jun. de 2009

SUSPIRO



Não tenho nada com as pessoas
tenho só contigo, meu Deus.

- Pássaro que pelo ar deslizas,
que pensamentos são os teus?

Minha estrela vai perseguida
e por entre círculos corre.

- Ó pássaros que vais morrendo
saberás que também se morre?

A que dorme vai caminhando,
a outra, desperta e imóvel jaz.

- Aonde te disseram que voasses?
Segue teu rumo e canta em paz.


Cecília Meireles
in Mar Absoluto

INSTRUMENTO

(Gary Benfield)



A cana agreste ou a harpa de ouro
permitem que alguém acorde
com brando pulso ou leve sopro.

Têm memória de água e vento
e – além dos mundos desvairados –
do silêncio, o etéreo silêncio!

Seus poderes de eternidade
tornam imenso e inesquecível
o som mais transitório e suave.

Chega-te concentrado e cauto,
que o universo inteiro te escuta!
Frase inútil, suspiro falso

vibram tão poderosamente
que a mão pára, o lábio emudece,
com medo do seu próprio engano.

E o eco sem perdões o repete
para um ouvinte sobre humano.


Cecília Meireles
in Mar Absoluto

CONVITE MELANCÓLICO

(John Atkinson Grimshaw)


Vinde todos, e contemplai-nos:
que somos os da terra fatigados,
de cabelos hirsutos
e de joelhos sem força,
com palavras, paisagens, figuras humanas
pregadas para sempre em nossa memória.

Já nem queremos nada,
tanto estamos desgostosos:
nem água nem ouro nem beijo.
Para nunca mais – o horizonte e a sua flor!

Podeis vir, que já se extinguiram as revelações.
Nada vos custa o espetáculo.
Rasgou-se o traçado em que nós gastamos em sonho,
e a arquitetura que trazíamos
voa de novo, em números celestes.

Vinde e contemplai-nos, que entardece.
Nossas sombras caminham para o reino da Sombra.
Nunca mais sabereis como foram os nossos olhos:
vinde vê-los para (se isto ainda se repetir)
vossos filhos reconheceram prontamente
os modos e o destino dos que apenas amaram,
e passaram,
amarrados,

eles, que tinham vindo
mostrar apenas o divino dinamismo!


Cecília Meireles
in Mar Absoluto

Os Homens Gloriosos

(John Atkinson Grimshaw)


Sentei-me sem perguntas à beira da terra,
e ouvi narrarem-se casualmente os que passavam.
Tenho a garganta amarga e os olhos doloridos:
deixai-me esquecer o tempo,
inclinar nas mãos a testa desencantada,
e de mim mesma desaparecer,
— que o clamor dos homens gloriosos
cortou-me o coração de lado a lado.

Pois era um clamor de espadas bravias,
de espadas enlouquecidas e sem relâmpagos,
ah, sem relâmpagos...
pegajosas de lodo e sangue denso.

Como ficaram meus dias, e as flores claras que pensava!
Nuvens brandas, construindo mundos,
como se apagaram de repente!

Ah, o clamor dos homens gloriosos
atravessando ébriamente os mapas!

Antes o murmúrio da dor, esse murmúrio triste e simples
de lágrima interminável, com sua centelha ardente e eterna.

Senhor da Vida, leva-me para longe!
Quero retroceder aos aléns de mim mesma!
Converter-me em animal tranqüilo,
em planta incomunicável,
em pedra sem respiração.

Quebra-me no giro dos ventos e das águas!
Reduze-me ao pó que fui!
Reduze a pó minha memória!

Reduze a pó
a memória dos homens, escutada e vivida...


Cecília Meireles,
in 'Mar Absoluto'

‘NATUREZA MORTA’

(Sir Lawrence Alma-Tadema)


Tinha uma carne de malmequeres, fina e translúcida,
com tênues veios de ametista, como o desenho sutil dos rios.
E ainda ficava mais branco, naquela varanda cheia de luar.

Os outros peixes nadavam gloriosos por dentro das ondas,
subiam, baixavam, corriam, brilhavam trêmulos de lua,
sem saberem daquele que não pertencia mais ao mar.

Deitado de perfil, em crespos verdes sossegados,
ia sendo servido, entre vinhos claros de altos copos,
envoltos numa gelada penugem de ar.

Seu olho de pérola baça, olho de gesso, consentia
que lhe fossem levando, pouco a pouco, todo o corpo...
E à luz do céu findava, e ao murmúrio do mar.


Cecília Meireles
in Mar Absoluto

5º Motivo da Rosa



Antes do teu olhar, não era,
nem será depois- primavera.
Pois viemos do que perdura,

não do que fomos. Desse acaso
do que foi visto e amado: - o prazo
do Criador na criatura...

Não sou eu, mas sim o perfume
que em ti me conserva e resume
o resto, que as horas consomem.

Mas não chores, que no meu dia
há mais sonho e sabedoria
que nos vagos séculos do homem.

Cecília Meireles
in Mar absoluto

3 de jun. de 2009

Inscrição



Sou entre flor e nuvem,
Estrela e mar.
Por que havemos de ser unicamente humanos,
Limitados em chorar?

Não encontro caminhos
Fáceis de andar.
Meu rosto vário desorienta as firmes pedras
Que não sabem de água e de ar.

E por isso levito.
É bom deixar
Um pouco de ternura e encanto indiferente
de herança, em cada lugar.

Rastro de flor e estrela,
Nuvem e mar.
Meu destino é mais longe e meu passo mais rápido:
A sombra é que vai devagar.


Cecília Meireles
in Mar Absoluto

Constância do deserto



Em praias de indiferença
navega o meu coração.
Venho desde a adolescência
na mesma navegação.
-- Por que mar de tanta ausência,
e areias brancas de tão
despovoada inconsistência,
de penúria e de aflição?

(Triste saudade que pensa
entre a resposta e a intenção!)
Números de grande urgência
gritam pela exatidão:
mas a areia branca e imensa
toda é desagregação!

Em praias de indiferença
navega meu coração.
Impossível, permanência.
Impossível, direção.
E assim por toda e existência
navegar navegarão
os que têm por toda ciência
desencanto e devoção.

Cecília Meireles
in Mar Absoluto

Cantar Guaiado*



Também cantarei guaiado
- ai, verde terra! ai, verde mar! -
por haver buscado tanto
e ter tão pouco que amar!

Morrerei sem ter contado
- ai, verde terra! ai, verde mar! -
quantas bagas do meu pranto
ficam no mundo a rolar.

Mas em meu lábio cerrado
- ai, verde terra! ai, verde mar!-
fica o vestígio do canto,
ai, do grande canto guaiado
para quem o interpretar...


Cecília Meireles
in Mar Absoluto

(*Guaiado= Triste, lamentoso, queixoso)mms

Canção



A Norman Fraser


Vela o teu rosto formosa,
que eu sou um homem do mar.
Que há de fazer de uma rosa,
quem vive de navegar?
-se qualquer vento a desfolha,
qualquer sol a faz secar,
se o deus dos mares não olha,
por quem se distrai a amar?

Pela grande água perdida,
anda a barca sem amor,
Cada qual tem sua vida,
uns, de deserto, uns, de flor.
Vela o teu rosto, formosa
que eu sou um homem do mar.
Poupa ao teu cetim de rosa,
o sal que ajudo a formar.


Cecília Meireles
in Mar Absoluto

VIGILÂNCIA



A estrela que nasceu trouxe um presságio triste:
inclinou-se o meu rosto e chorou minha fronte:
que é dos barcos do meu horizonte?

Se eu dormir, aonde irão esses errantes barcos,
dentro dos quais o destino carrega
almas de angústia demorada e cega?

E como adormecer nesta Ilha em sobressalto,
se o perigo do mar no meu sangue se agita,
e eu sou, por quem navega, a eternamente aflita?

E que deus me dará força tão poderosa
para assim resistir todas a vida desperta
e com os deuses conter a tempestade certa?

A estrela que nasceu tinha tanta beleza
que voluntariamente a elegeu minha sorte.
Mas a beleza é o outro perfil do sofrimento,
e só merece a vida o que é senhor da morte.


Cecília Meireles
in Mar Absoluto

MINHA SOMBRA



Tranqüila sombra
que me acompanhas,
em pedras rojas,
no ar te levantas,
acompanhando
meus movimentos,
pisada e escrava
por tanto tempo!

Vejo-te e choro
da companhia:
que nem sou tua
nem tu és minha.
E me pertences
e te pertenço,
mais do que à vida
e ao pensamento.

Sombra por sombra
toda abraçada,
levo-te como
anjo da guarda.

Tens tudo quanto
me quero e penso:
- frágil, exata.
(Amor. Silêncio.)

Ao despedir-me
do mundo humano
sei que te extingues
sem voz nem pranto,
no mesmo dia.
Preito como esse
tu, só, me rendes,
sombra que tinha!

Imensa pena,
que assim te deixe,
- ó companheira, -
sem companhia! ...


Cecília Meireles
in Mar Absoluto

SUGESTÃO



Sede assim – qualquer coisa
serena, isenta, fiel.

Flor que se cumpre,
sem pergunta.

Onda que se esforça,
por exercício desinteressado.

Lua que envolve igualmente
os noivos abraçados
e os soldados já frios.

Também como este ar da noite:
sussurrante de silêncios,
cheio de nascimentos e pétalas.

Igual à pedra detida,
sustentando seu demorado destino.
E à nuvem, leve e bela,
vivendo de nunca chegar a ser.

À cigarra, queimando-se em música,
ao camelo que mastiga sua longa solidão,
ao pássaro que procura o fim do mundo,
ao boi que vai com inocência para a morte.

Sede assim qualquer coisa
serena, isenta, fiel.

Não como o resto dos homens.


Cecília Meireles
in: Mar Absoluto
Seja bem-vindo. Hoje é