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22 de set. de 2024

PRIMAVERA
(Cecília Meireles)

Mas é certo que a primavera chega. É certo que a vida não se esquece, e a terra maternalmente se enfeita para as festas da sua perpetuação.
Algum dia, talvez, nada mais vai ser assim. Algum dia, talvez, os homens terão a primavera que desejarem, no momento que quiserem, independentes deste ritmo, desta ordem, deste movimento do céu. E os pássaros serão outros, com outros cantos e outros hábitos, — e os ouvidos que por acaso os ouvirem não terão nada mais com tudo aquilo que, outrora se entendeu e amou.

Enquanto há primavera, esta primavera natural, prestemos atenção ao sussurro dos passarinhos novos, que dão beijinhos para o ar azul. Escutemos estas vozes que andam nas árvores, caminhemos por estas estradas que ainda conservam seus sentimentos antigos: lentamente estão sendo tecidos os manacás roxos e brancos; e a eufórbia se vai tornando pulquérrima, em cada coroa vermelha que desdobra. Os casulos brancos das gardênias ainda estão sendo enrolados em redor do perfume. E flores agrestes acordam com suas roupas de chita multicor.

Tudo isto para brilhar um instante, apenas, para ser lançado ao vento, — por fidelidade à obscura semente, ao que vem, na rotação da eternidade. Saudemos a primavera, dona da vida — e efêmera.

De - Obra em Prosa - Vol. 1 






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19 de set. de 2024

CANÇÃO QUASE TRISTE







Brilhou a rosa
No espinhoso galho.
Quem viu? Ninguém.

Nuvens muito altas
Lágrimas de orvalho
Deram-lhe: - de além.

Seca os teus olhos,
No amargo trabalho,
Que a noite já vem.

Vê-te a ti mesmo,
Sê teu agasalho,
Pobre Pero Sem.

Cecília Meireles
In Retrato Natural


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CANÇÃO DO AMOR-PERFEITO


Eu vi o raio de sol
Beijar o outono.
Eu vi na mão dos adeuses
O anel de ouro.
Não quero dizer o dia.
Não posso dizer o dono.

Eu vi bandeiras abertas
Sobre o mar largo
E ouvi cantar as sereias.
Longe, num   barco,
Deixei meus olhos alegres,
Trouxe meu sorriso amargo.

Bem no regaço da lua,
Já não padeço.
Ai, seja como quiseres,
Amor-Perfeito,
Gostaria que ficasses,
Mas, se fores, não te esqueço.

Cecília Meireles
In Retrato Natural


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25 de abr. de 2021

Primeiro Pássaro



Primeiro Pássaro

Chega e canta.
Canta e escuta:
Para e escuta:
com os ouvidos, com os olhos, com as penas.

O silencio da manhã é um longo muro, ainda,
entre este mundo e o céu.

Escuta e canta.
Canta e para.
Para e parte.

Devia ser a primavera.
Mas não houve resposta.

Na solidão se perde o inquieto canto prematuro.
Perde-se no silencio o antecipado pássaro.
talvez triste.  


Cecília Meireles
In: Poemas Italianos


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10 de abr. de 2021

Há um lábio sobre a noite




Há um lábio sobre a noite, um lábio sem palavra.
O secular ouvido espera, como em ruínas,
Sem poder desistir, sem coragem de crer.

As vigílias que estão pela terra guardadas
Não compreendem que alento as conservam inflexíveis,
Sem que um suspiro ouse nascer da angústia.

Mas o lábio da noite é uma espada suspensa.
Ferida para sempre a alegria dos olhos
Que a percebem parada entre a súplica e o céu.

Pouco a pouco se morre e ninguém mais encontra
A rosa que caiu do coração vencido,
Nas mil sombras que vêm desses bosques da insônia.


Há um lábio longe, que em vão se escuta.


Cecília Meireles
De Solombra
In ‘Poesia Completa’ Pag 1276


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29 de set. de 2014

Chuva




Sobre as casas fechadas, a chuva.
Sobre o sono dos homens, a chuva.
Sobre os mortos inúmeros, a chuva.

A chuva noturna sobre as arvores.
A chuva noturna sobre os templos
A chuva noturna sobre o mar.

Sobre a solidão deste mundo, a chuva.
A solidão da chuva, na solidão.

Abril, 1954

Cecília Meireles
In: Poesia Completa

25 de set. de 2014

O tempo seca o amor




O tempo seca a beleza,
seca o amor, seca as palavras.
Deixa tudo solto, leve,
desunido para sempre
como as areias nas águas.

O tempo seca a saudade,
seca as lembranças e as lágrimas.
Deixa algum retrato, apenas,
vagando seco e vazio
como estas conchas das praias.

O tempo seca o desejo
e suas velhas batalhas.
Seca o frágil arabesco,
vestígio do musgo humano,
na densa turfa mortuária.

Esperarei pelo tempo
com suas conquistas áridas.
Esperarei que te seque,
não na terra, Amor-Perfeito,
num tempo depois das almas.

Cecília Meireles, 
in "Retrato Natural", 1949.

14 de set. de 2014

CAMPO




Vem ver o dia crescer entre o chão e o céu,
o aroma dos verdes campos ir sendo orvalho na alta lua.

Os bois deitados olham a frente e o longe, atentamente,
aprendendo alma futura nas harmonias distribuídas

O mesmo sol das terras antigas lavra nas pedras estrelas claras.
Nem as nuvens se movem.Nem os rios se queixam.

Estão deitados, mirando-se,dos seus opostos lugares,
e amando-se em silêncio, como esposos separados.

Neste descanso imenso, quem te dirá que viveste em tumulto,
e houve um suspiro em teu lábio, ou vaga lágrima em teus dedos?

Morreram as ruas desertas e os ávidos habitantes
ficaram soterrados pelas paixões que os consumiam.

A brisa que passa vem pura, isenta, sem lembranças.
Tece carícia e música nos finos fios do arrozal.

Em tua mão quieta, pousarão borboletas silenciosas.
Em teu cabelo flutuarão coroas trêmulas de sombra e sol.

Tão longe, tão mortos,jazem os desesperos humanos!
E os corações perversos não merecem o convívio serenos das plantas.

Mas teus pés andarão por aqui entre flores azuis,
e o perfume te envolverá como um largo céu.

O crepúsculo que cobre a memória, o rosto, as árvores,
inclinará teu corpo, docemente, em sua alfombra.

Acima do lodo dos pântanos, verás desabrochar o vôo branco das garças.
E, acima do teu sono, o vôo sem tempo das estrelas.


Cecília Meireles
In Mar Absoluto e Outros Poemas
 

13 de set. de 2014

VISITA DA CHUVA



Estas altas árvores
são umas harpas verdes
com cordas de chuva
que tange o vento.

Vêm os sons mais claros
da amendoeira amarela,
pontuados na palma
das fortes folhas virentes.

Os sons mais frágeis nascem
na fronde da acácia leve,
com frouxos cachos de flores
e folhinhas paralelas.

Os sons mais graves escorrem
das negras mangueiras antigas,
de grosso, torcidos galhos,
franjados de parasitas.

Os sons mais longínquos e vagos
vêm dos finos ciprestes:
chegam e apagam-se, nebulosos,
desenham-se e desaparecem ...

Cecília Meireles
In Mar Absoluto e Outros Poemas (1945)





12 de set. de 2014

NOITE




Tão perto!
Tão longe!
Por onde
é o deserto?
Às vezes,
responde,
de perto,
de longe.
Mas depois
se enconde.
Somos um
ou dois?
Às vezes,
nenhum. 
E em seguida,
tantos!
A vida
transborda
por todos
os cantos.
Acorda
com modos
de puro
esplendor.
Procuro
meu rumo:
horizonte
escuro:
um muro
em redor.
Em treva
me sumo.
Para onde
me leva?

Pergunto a Deus se estou viva,
se estou sonhando ou acordada.
Lábio de Deus! – Sensitiva
tocada.

Cecília Meireles
In Mar Absoluto e Outros Poemas (1945)


Houve um poema



Houve um poema,
entre a alma e o universo.
Não há mais.
Bebeu-o a noite, com seus lábios silenciosos.
Com seus olhos estrelados de muitos sonhos.

Houve um poema:
Parecia perfeito.
Cada palavra em seu lugar,
como as pétalas nas flores
e as tintas no arco-íris.
No centro, mensagem doce
E intransmitida jamais.

Houve um poema:
e era em mim que surgia, vagaroso.
Já não me lembro, e ainda me lembro.
As névoas da madrugada envolvem sua memória.
É uma tênue cinza.
O coral do horizonte é um rastro de sua cor.
Derradeiro passo.

Houve um poema.
Há esta saudade.
Esta lágrima e este orvalho - simultâneos -
que caem dos olhos e do céu.



Cecília Meireles,
in Metal Rosicler 


10 de set. de 2014

Acalanto



Dorme que eu penso.
Cada qual assim navega
pelo seu mar imenso.

Estarás vendo.Eu estou cega.
Nem te vejo nem a mim.
No teu mar, talvez se chega.
Este, não tem fim.

Dorme, que eu penso.
Que eu penso nesse navio
clarividente em que vais.
Mensagens tristes lhe envio
Pensamentos...- nada mais.

Cecília Meireles
In Mar Absoluto e outros poemas

9 de set. de 2014

CHUVA NA MONTANHA



Como caíram tantas águas,
nublou-se o horizonte,
nublou-se a floresta,
nublou-se o vale.

E as plantas moveram-se azuis
dentro da onda que as toldava.

Tudo se transformou em cristal fosco:
as jaqueiras cansadas de frutos,
as palmeiras de leque aberto,
e as mangueiras com suas frondes
de arredondadas nuvens negras superpostas.

O arco-íris saltou somo serpente multicor
nessa piscina de desenhos delicados.

Cecília Meireles
in Mar Absoluto

30 de ago. de 2014

A Língua de Nhem



Havia uma velhinha
que andava aborrecida
pois dava a sua vida
para falar com alguém.

E estava sempre em casa
a boa velhinha
resmungando sozinha:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem...

O gato que dormia
no canto da cozinha
escutando a velhinha,
principiou também

a miar nessa língua
e se ela resmungava,
o gatinho a acompanhava:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem...

Depois veio o cachorro
da casa da vizinha,
pato, cabra e galinha
de cá, de lá, de além,

e todos aprenderam
a falar noite e dia
naquela melodia
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem...

De modo que a velhinha
que muito padecia
por não ter companhia
nem falar com ninguém,

ficou toda contente,
pois mal a boca abria
tudo lhe respondia:
nhem-nhem-nhem-nhem-nhem-nhem...

Cecilia Meireles.
In Ou Isto ou Aquilo


27 de ago. de 2014

Diálogos do jardim



Debaixo de tanto calor,
o pássaro arranjou um ramo verde e fresco,
e pôs-se a falar.

O pássaro perguntava-me:
"Lembras-te das grandes árvores,
com lágrimas douradas de resina?"

Respondi-lhe que sim, que me lembrava,
que naquele tempo ouvíramos falar em âmbar,
e queríamos fazer colares de resina:
mas em nossas mãos ela perdia a transparência.

"Lembras-te dos cajus maduros,
caindo fofamente na folhagem morta do chão?"

Respondi-lhe que sim, que ainda os via,
muito longe, amarelos e túrgidos,
às vezes, rebentados, na queda,
escorrendo, perfumosos, sumo doce.

" Lembras-te das rodelinhas douradas
que a folhagem e o sol balançavam por cima dos livros?"

Respondi-lhe que sim, e que eram livros de histórias,
e foram depois romances, e um dia poemas,
e mais tarde pensamentos difíceis...

E o passarinho perguntava:
"Lembras-te da tua voz devolvida pelo eco?"

E eu me lembrava, mas não das palavras,
só que as respostas eram sempre incompletas.

"E o recorte da montanha, no horizonte,
lembras-te como era azul e negro? E as palmeiras?
E as sebes de flores encarnadas?"

E eu me lembrava de tudo, e sentia o aroma da tarde,
e o canto das cigarras, e o lamento dos sabiás
e das rolas,
e via brilhar a bola azul do telhado, que amei tanto,
e sentia, tão doce,a minha perpétua solidão.

E perguntei ao pássaro:"Onde estavas,
para me perguntares tudo isso?
Também já viveste tanto?"

E ele me respondeu: "Não, tudo isso está no fundo dos teus olhos.
Eu só vou perguntando o que estou lendo...
E, porque o leio, canto."


- Cecília Meireles,
in Dispersos

 
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