25 de abr. de 2021

Primeiro Pássaro



Primeiro Pássaro

Chega e canta.
Canta e escuta:
Para e escuta:
com os ouvidos, com os olhos, com as penas.

O silencio da manhã é um longo muro, ainda,
entre este mundo e o céu.

Escuta e canta.
Canta e para.
Para e parte.

Devia ser a primavera.
Mas não houve resposta.

Na solidão se perde o inquieto canto prematuro.
Perde-se no silencio o antecipado pássaro.
talvez triste.  


Cecília Meireles
In: Poemas Italianos


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10 de abr. de 2021

Há um lábio sobre a noite




Há um lábio sobre a noite, um lábio sem palavra.
O secular ouvido espera, como em ruínas,
Sem poder desistir, sem coragem de crer.

As vigílias que estão pela terra guardadas
Não compreendem que alento as conservam inflexíveis,
Sem que um suspiro ouse nascer da angústia.

Mas o lábio da noite é uma espada suspensa.
Ferida para sempre a alegria dos olhos
Que a percebem parada entre a súplica e o céu.

Pouco a pouco se morre e ninguém mais encontra
A rosa que caiu do coração vencido,
Nas mil sombras que vêm desses bosques da insônia.


Há um lábio longe, que em vão se escuta.


Cecília Meireles
De Solombra
In ‘Poesia Completa’ Pag 1276


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28 de jan. de 2015

Falai de Deus com a clareza



Falai de Deus com a clareza
da verdade e da certeza:
com um poder

de corpo e alma que não possa
ninguém, à passagem vossa,
não o entender.

Falai de Deus brandamente,
que o mundo se pôs dolente,
tão sem leis.

Falai de Deus com doçura,
que é difícil ser criatura:
bem o sabeis.

Falai de Deus de tal modo
que por Ele o mundo todo
tenha amor

à vida e à morte, e, de vê-Lo,
O escolha como modelo
superior.

Com voz, pensamentos e atos
representai tão exatos
os reinos seus

que todos vão livremente
para esse encontro excelente.
Falai de Deus.



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)

Abriu-se a janela



Abriu-se a janela
que existia no ar.
Ninguém viu posar
qualquer sombra nela.

Entre o lago e a lua,
sozinha subia
uma arvore fria,
delicada e nua.

E, de galho em galho,
andavam as loucas,
com cestas e toucas,
em busca de orvalho.

Azuis, os vestidos,
e o rosto coberto
de um luar incerto
- com os traços perdidos.

(Certamente para
que ninguém lembrasse
a dorida face
que amara e chorara...)

As loucas nos ramos
brincavam. E havia
no ar essa alegria
que nunca alcançamos.

Pela madrugada,
desfez-se a janela.
Partiram, com ela,
as sombras do nada.



Cecília Meireles
In: Canções (1956)

Distância



Quando o sol ia acabando
e as águas mal se moviam,
tudo que era meu chorava
da mesma melancolia.


Outras lágrimas nasceram
com o nascimento do dia:
só de noite esteve sêco
meu rosto sem alegria.
(Talvez o sol que acabara
e as águas que se perdiam
transportassem minha sombra
para a sua companhia...)


Oh!
mas nem no sol nem nas águas
os teus olhos a veriam...
— que andam longe, irmãos da lua,
muito clara e muito fria...



Cecília Meireles
in 'Viagem'

14 de dez. de 2014

Desventura




Tu és como o rosto das rosas:
diferente em cada pétala.

Onde estava o teu perfume? Ninguém soube.
Teu lábio sorriu para todos os ventos
e o mundo inteiro ficou feliz.

Eu, só eu, encontrei a gota de orvalho que te alimentava,
como um segredo que cai do sonho.

Depois, abri as mãos, - e perdeu-se.

Agora, creio que vou morrer.

Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Viagem (1939)
 
 
[Arte: Regina Helena]

RETRATO DE MULHER TRISTE

 

Vestiu-se para um baile que não há.
Sentou-se com suas últimas jóias.
E olha para o lado, imóvel.

Está vendo os salões que se acabaram,
embala-se em valsas que não dançou,
levemente sorri para um homem.
O homem que não existiu.

Se alguém lhe disser que sonha,
levantará com desdém o arco das sobrancelhas,
Pois jamais se viveu com tanta plenitude.

Mas para falar de sua vida
tem de abaixar as quase infantis pestanas,
e esperar que se apaguem duas infinitas lágrimas.





Cecília Meireles,
in 'Poemas'





[Arte by Michael & Inessa Garmash]

SONETO ANTIGO



Responder a perguntas não respondo.
Perguntas impossíveis não pergunto.
Só do que sei de mim aos outros conto:
de mim, atravessada pelo mundo.

Toda a minha experiência, o meu estudo,
sou eu mesma que, em solidão paciente,
recolho do que em mim observo e escuto
muda lição, que ninguém mais entende.

O que sou vale mais do que o meu canto.
Apenas em linguagem vou dizendo
caminhos invisíveis por onde ando.

Tudo é secreto e de remoto exemplo.
Todos ouvimos, longe, o apelo do Anjo.
E todos somos pura flor de vento.

Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos


[Arte by  Michael & Inessa Garmash]

DESENHO


Árvore da noite
Com ramos azuis
Até o horizonte.

Estendi meus braços,
E apenas achei
Nevoeiros esparsos.

O resto era sonhos
No profundo fim
Da vida e da noite.

A memória em pranto
Os ramos azuis
Fica procurando

E de olhos fechados
Vejo longe, sós,
Meus alados braços.

Ó noite, azul, árvore ...
Suspiro a subir
Muro de saudade!

Cecília Meireles
In Retrato Natural

SUPÉRFLUO


A chuva coloca no bico dos pássaros
um guizo d’água.

A tarde levanta da verde folhagem
uma espuma de aroma.

Uma vida, quase a teus pés, dirige-te
um terno pensamento.

Oh, as pequenas coisas supérfluas
extraviadas no mundo.

Quem ouve? quem vê? quem entende?

Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos

UMA PALMADA BEM DADA


É a menina manhosa
Que não gosta da rosa,
Que não quer A borboleta
Porque é amarela e preta,
Que não quer maçã nem pêra
Porque tem gosto de cera,
Porque não toma leite
Porque lhe parece azeite,
Que mingau não toma
Porque é mesmo goma,
Que não almoça nem janta
porque cansa a garganta,
Que tem medo do gato
E também do rato,
E também do cão
E também do ladrão,
Que não calça meia
Porque dentro tem areia
Que não toma banho frio
Porque sente arrepio,
Que não toma banho quente
Porque calor sente
Que a unha não corta
Porque fica sempre torta,
Que não escova os dentes
Porque ficam dormentes
Que não quer dormir cedo
Porque sente imenso medo,
Que também tarde não dorme
Porque sente um medo enorme,
Que não quer festa nem beijo,
Nem doce nem queijo.
Ó menina levada,
Quer uma palmada?
Uma palmada bem dada
Para quem não quer nada!

Cecília Meireles
in 'Ou isso ou aquilo'

[Arte de Hans Zatzka]

9 de nov. de 2014

TRÊS ORQUÍDEAS*


 
(Rio de Janeiro, 7 de novembro de 1901 — Rio de Janeiro, 9 de novembro de 1964)
[Cinquenta anos sem Cecília...]


TRÊS ORQUÍDEAS*
 
 
As orquídeas do mosteiro fitam-me com seus olhos roxos.
Elas são alvas, toda pureza,
com uma leve mácula violácea para uma pureza de sonho triste, um dia.
Que dia? Que dia? Dói-me a sua brevidade.
Ah! não veem o mundo. Ah! não me veem como eu as vejo.
Se fossem de alabastro seriam mais amadas?
Mas eu amo o terno e o efêmero e queria fazer o efêmero eterno.

As três orquídeas brancas eu sonharia que durassem,
com sua nervura humana,
seu colorido de veludo,
a graça leve do seu desenho,
o tênue caule de tão delicado verde.
Que elas não veem o mundo, que o mundo as visse.
Quem pode deixar de sentir sua beleza?
Antecipo-me em sofrer pelo seu desaparecimento.
E aspira sobre elas a gentileza igualmente frágil, a gentileza floril
da mão que as trouxe para alegrar a minha vida.

Durai, durai, flores, como se estivésseis ainda
no jardim do mosteiro amado onde fostes colhidas,
que escrevo para perdurares em palavras,
pois desejaria que para sempre vos soubessem,
alvas, de olhos roxos (ah! cegos?)
com leves tristezas violáceas na brancura de alabastro.

Cecília Meireles
In "Flor de Poemas"

*Último poema de Cecília Meireles, escrito no Hospital dos Servidores do Estado, no Rio de Janeiro, em agosto de 1964

14 de out. de 2014

Ritmo



 

O ritmo em que gemo
doçuras e mágoas
é um dourado remo
por douradas águas.


Tudo, quando passo,
olha-me e suspira.
- Será meu compasso
que tanto os admira?



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Vaga Música (1942)

51





 
A onda que se levanta
do meu peito para o teu
chora mesmo quando canta,
pois vem de um mar que sofreu.


É o mar da morena gente,
de exaltado coração,
que encara a morte de frente,
cantando qualquer canção.


Que morre sorrindo
num lugar qualquer,
que acha tudo lindo,
porem nada quer...



Cecília  Meireles
In: Morena, Pena de Amor (1939)


29 de set. de 2014

Chuva




Sobre as casas fechadas, a chuva.
Sobre o sono dos homens, a chuva.
Sobre os mortos inúmeros, a chuva.

A chuva noturna sobre as arvores.
A chuva noturna sobre os templos
A chuva noturna sobre o mar.

Sobre a solidão deste mundo, a chuva.
A solidão da chuva, na solidão.

Abril, 1954

Cecília Meireles
In: Poesia Completa

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