19 de mai. de 2009

CARONTE

(Joachim Patinir)

Caronte, juntos agora remaremos:
eu com a música, tu com os remos.

Meus pais, meus avós, meus irmãos,
já também vieram, pelas tuas mãos.

Mas eu sempre fui a mais marinheira:
trata-me como tua companheira.

Fala-me das coisas que estão por aqui,
das águas, das névoas, dos peixes, de ti.

Que mundo tão suave! que barca tão calma!
Meu corpo não viste: sou alma.

Doce é deixar-se, e ternura o fim
do que se amava. Quem soube de mim?

Dize: a voz dos homens fala-nos ainda?
Não, que antes do meio sua voz é finda.

Rema com doçura, rema devagar:
não estremeças este plácido lugar.

Pago-te em sonho, pago-te em cantiga,
pago-te em estrela, em amor de amiga.

Dize, a voz dos deuses onde principia,
neste mundo vosso, de perene dia?

Caronte, narra mais tarde, a quem vier,
como a sombra trouxeste aqui de uma mulher

tão só, que te fez teu amigo;
tão doce - ADEUS! - que canta até contigo!


Cecília Meireles
In “Mar Absoluto -1945-

6 comentários:

  1. Karla Barrosagosto 04, 2009

    lindíssimo poema! Fala-me particularmente de travessias lúcidas, mas não meramente racionais. Seja no Aqueronte grego, seja em nosso cotidiano, em nossas escolhas. Estas, que muitas vezes exigem de nós não apenas travessias, mas que queimemos o barco ou a ponte que utilizamos para realizá-las!!! Ah, se nos fosse dado em todas as nossas decisões a companhia desse vigoroso barqueiro, seguiríamos mais serenos rumo aos novos horizontes... Feliz também a escolha de Clair de Lune ao fundo. Parabéns!

    ResponderExcluir
  2. O poema leva-me a essa viagem que a alma da poetisa faz, no barco de Caronte. E, de tal forma que, no transcorrer dos versos, parece que estou vendo a expressão do barqueiro e ouvindo a música no ar, e captando cada detalhe da ida: as trevas dando lugar à claridade, o enlevo que transcende na expectativa da chegada, o silêncio, a suavidade, o inexplicável...

    ResponderExcluir
  3. Luiz Carlos de Oliveiramarço 28, 2011

    O poema traduz a exata circunstância da viagem que a alma da poetisa fez: a chegada do barco, o instante em que ela o adentra, os pedidos, as divagações ao longo da jornada; a constatação do antes, quando o barco parte, e do depois, quando chega. E se ateve de tal forma naquela aventura, que chegou a confessar ao barqueiro seu sincero amor de amiga... Relata como que fotografando por onde passa, e mais ainda, como que desnudando a própria alma ao passar...

    ResponderExcluir
  4. Aqui, neste lugar, só minha alma veio. Meus amores e anseios e expectativas, ficaram no mundo dos vivos. Mas vislumbro tanta beleza na infinitude que se divisa ao longe, a ponto de transparecer ter trazido os meus sonhos comigo...

    ResponderExcluir
  5. Oliveira Mastermarço 12, 2013

    A poetisa deixa-se ir, como que envolvida de corpo e alma no enlevo da partida... Ir, como foram seus pais e seus irmãos, mas de tal forma mais profunda, mais inteira. O barco, as águas misteriosas, o lugar envolvente, tudo compreende o cenário por onde sua alma passa. Alma que dialoga, indaga, questiona, ama... para nunca mais voltar!

    ResponderExcluir
  6. Não sou entendido em poesias mas esta sempre me tocou diferente, talvez porque me surgiu num momento muito especial.

    ResponderExcluir

Muito grata por seu comentário, ele é muito importante para nós!

Seja bem-vindo. Hoje é