19 de mai. de 2009

Retrato Obscuro


Vêem-se passar seus dois pés,
serenos e certos.
Mas, como as pedras admiradas
e o pó jacente
e as mínimas vidas contritas,
sabe-se que há uma espécie de ninho em redor deles,
que lhes retira o peso, e governa,
governa seu destino e os demais.

Assim é ela.

Entre pássaros e flores,
é preciso procurar aprender suas mãos:
inclinam-se, giram, passam,
pertencem a outros enredos,
têm ofícios longe da terra.

Perguntam-me por ela.
Tão triste, responder!
Ela chega, toca-me, deixa-me.
Eu nem olho para ela.
Doce e amargo é pensá-la,
e estar à sua disposição, tacitamente.
Sou o degrau da escada e o fecho em que pousam seus dedos.
Às vezes, seu baço espelho,
e o campo onde um momento desliza seu véu.

Ela vai sempre na frente.
Sozinha. Com um silêncio de bússola e deusa.
Livre de encontros, paradas, limites,
anda leve como as borboletas
e segura como o sol no céu.
E é diante de suas mãos que se sente
esta miséria taciturna,
a obrigação do horizonte,
o curto espaço entre o nascimento e a morte.

Choro porque ela está por estar – assim perto e entre nós,
e comigo – sem mim.
Sua presença animando e enganando minha forma,
não me deixando ver até onde sou ela,
e desde onde a outra que a acompanha,
sabendo-a e sem a saber.

Vede a cor de seus olhos
como desmaia, desaparece, límpida e liberta,
por firmes ou oscilantes horizontes.
Sei, quando ela fala, que é diferente de todos,
e, mesmo quando se parece comigo, fico sem saber se sou eu.

E quando não diz nada, sofro, perguntando o que a detém,
por lugares que apenas sinto,
e não a posso ajudar a amar nem a sofrer,
porque nem sofre nem ama
e é pura, ausente e próxima.

Quem poderá dizer alguma coisa certa a seu respeito?

Quem poderá dizer alguma coisa certa a seu respeito?
Ela mesma pararia, ouvindo-se descrever,
atônita.
Seu rosto inviolável é como o das estrelas,
quando os homens explicam:
“Aquela é Sírius... Aquela, Antares... Aquela...”

E como as estrelas
a levo e me leva – incomunicável,
suspensa na vida,
sem glória e sem melancolia.

Cecília Meireles
In Mar Absoluto -1945-

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