30 de abr. de 2009

Por baixo dos largos ficus


Por baixo dos largos fícus
plantados à beira-mar;
em redor dos bancos frios
onde se deita o luar,
vão passando os varredores
calados, a vassourar.

Diríeis que andam sonhando,
se assim os vísseis passar,
por seu calmo rosto branco,
sua boca sem falar,
- e por varrerem as flores
murchas, de verem amar.

E por varrerem os nomes
desenhados par a par,
no vão desejo dos homens,
na areia vã, de pisar...
- por varrerem os amores
que houve naquele lugar.

Visto de baixo, o arvoredo
é renda verde de luar,
desmanchada ao vento crespo
que à noite regressa ao mar.

Vão passando os varredores;
vão passando e vão varrendo
a terra, a lembrança, o tempo.

E, de momento em momento,
varrem seu próprio passar...

Cecília Meireles
in Mar absoluto

Epigrama


Pelo arco-íris tenho andado.
Mas de longe, e sem vertigens.
E assim pude abraçar nuvens,
para amá-las e perdê-las.

Foi meu professor um pássaro,
dono de arco-íris e nuvens,
que dizia com as asas,
em direção às estrelas..

Cecília Meireles
in Mar absoluto

Lamento da noiva do soldado


Como posso ficar nesta casa perdida,
neste mundo da noite
sem ti?

Ontem falava a tua boca à minha boca…
E agora que farei,
sem saber mais de ti?

Pensavam que eu vivesse por meu corpo e minha alma!
Todos os olhos são de cegos… Eu vivia
unicamente de ti!

Teus olhos, que me viram, como podem ser fechados?
Aonde foste, que não me chamas, não me pedes,
como serei agora, sem ti?

Cai neve nos teus pés, no teu peito, no teu
coração… Longe e solitário… Neve, neve…
E eu fervo em lágrimas, aqui.


Cecília Meireles
in Mar absoluto

Prelúdio


Que tempo seria,
ó sangue, ó flor,
em que se amaria
de amor.

Pérolas de espuma,
de espuma e sal.
Nunca mais nenhuma
igual.

Era mar e lua:
minha voz, mar.
Mas a tua... a tua,
– luar!

Coroa divina
que a própria luz
nunca mais tão fina
produz.

Que tempo seria,
ó sangue, ó flor,
em que se amaria
de amor!

Cecília Meirels
in Mar absoluto

Museu


Espadas frias, nítidas espadas,
duras viseiras já sem perspectiva,
cetros sem mãos, coroa já não viva
de cabeças em sangue naufragadas;
anéis de demorada narrativa,
leques sem falas, trompas sem caçadas,
pêndulos de horas não mais escutadas,
espelhos de memória fugitiva;
ouro e prata, turquesa e granadas,

que é da presença passageira e esquiva
das heranças dos poetas, malogradas:
a estrela, o passarinho, a sensitiva,
a água que nunca volta, as bem amadas,
a saudade de Deus, vaga e inativa...?


Cecilia Meireles
in Mar absoluto e outros poemas- 1945-

29 de abr. de 2009

'Com agulhas de prata'



Com agulhas de prata
de brilho tão fino
bordai as sedas do vosso destino.

Bordai as tristezas
de todos os dias
e repentinamente as alegrias.

Que fiquem as sedas
muito primorosas
mesmo com lágrimas presas nas rosas.

Com agulhas de prata
de brilho tão frio...
ai, bordai as sedas,
sem partir o fio!


Cecília Meireles
in 'Sonho' (Solombra)

26 de abr. de 2009

AMÉM



Hoje acabou-se-me a palavra,
e nenhuma lágrima vem.
Ai, se a vida se me acabara
também!


A profusão do mundo, imensa,
tem tudo, tudo – e nada tem.
Onde repousar a cabeça?
No além?


Fala-se com os homens, com os santos,
consigo, com Deus. . . E ninguém
entende o que se está contando
e a quem. . .


Mas terra e sol, luas e estrelas
giram de tal maneira bem
que a alma desanima de queixas.
Amém.



Cecília Meireles
In: Vaga Música

PEQUENA FLOR



Como pequena flor que recebeu uma chuva enorme
e se esforça por sustentar o oscilante cristal das gotas
na seda frágil e preservar o perfume que ai dorme,

e vê passarem as leves borboletas livremente,
e ouve cantarem os passares acordados nesta angústia,
e o sol claro do dia as claras estátuas beijando sente.

e espera que se desprenda o excessivo.úmido orvalho
pousado, trêmulo, e sabe que talvez o vento
a libertasse, porém a desprenderia do galho,

e nesse tremor e esperança aguarda o mistério transida
assim repleto de acasos e todo coberto de lágrimas
há um coração nas lânguidas tardes que envolvem a vida.


Cecília Meireles
in Vaga Música

25 de abr. de 2009

Mulher adormecida



Moro no ventre da noite:
sou a jamais nascida.
E a cada instante aguardo vida.

As estrelas, mais o negrume
são minhas faixas tutelares,
e as areias e o sal dos mares.

Ser tão completa e estar tão longe!
Sem nome e sem família cresço,
e sem rosto me reconheço.

Profunda é a noite onde moro.
Dá no que tanto se procura.
Mas intransitável, e escura.

Estarei um tempo divino
como árvore em quieta semente,
dobrada na noite, e dormente.

Até que de algum lado venha
a anunciação do meu segredo
desentranhar-me deste enredo,

Arrancar-me á vagueza imensa,
consolar-me deste abandono,
mudar-me a posição do sono.

Ah, causador dos meus olhos,
que paisagem cria ou pensa
para mim, a noite densa?

Cecília Meireles
in Mar Absoluto e outros poemas

Canção



Ouvi cantar de tristeza,
porém não me comoveu.
Para o que todos deploram,
que coragem Deus me deu.

Ouvi cantar de alegria.
No meu caminho, parei.
Meu coração fez-se noite.
fechei os olhos. Chorei.

Dizem que cantam amores.
Não quero ouvir mais cantar.
Quero silêncios de estrelas,
voz sem promessas do mar.


Cecília Meireles
in: Mar absoluto e outros poemas-1945-

Distância



Quem sou eu, a que está nesta varanda,
em frente deste mar, sob as estrelas,
vendo vultos andarem?

Sabem, acaso, os vultos, quem vão sendo?
Sentem o céu, as águas, quando passam?
Ou não vêem, ou não lembram?

Como alguém deste mundo para a lua
dirige os olhos, meditando coisas
e assim no vago mira.

- Para este mundo vão meus pensamentos,
tão estrangeiros, tão desapegados,
como se esta varanda fosse a lua.


Cecília Meireles
in :Mar absoluto e outros poemas-1945-

24 de abr. de 2009

Romantismo



Quem tivesse um amor, nesta noite de lua,
para pensar um belo pensamento
e pousá-lo no vento!...

Quem tivesse um amor - longe, certo e impossível -
para se ver chorando, e gostar de chorar,
e adormecer de lágrimas e luar!

Quem tivesse um amor, e, entre o mar e as estrelas,
partisse por nuvens, dormente e acordado,
levitando apenas, pelo amor levado...

Quem tivesse um amor, sem dúvida nem mácula,
sem antes nem depois: verdade e alegoria...
Ah! Quem tivesse... (Mas quem tem? Quem teria?)


Cecília Meireles
in Mar Absoluto e outros poemas -1945-

Irrealidade




Como num sonho
aqui me vedes:
água escorrendo
por estas redes
de noite e dia.
A minha fala
parece mesmo
vir do meu lábio
e anda na sala
suspensa em asas
de alegoria.
Sou tão visível
que não se estranha
o meu sorriso.
E com tamanha
clareza pensa
que não preciso
dizer que vive
minha presença.
E estou de longe,
compadecida.
Minha vigília
é anfiteatro
que toda a vida
cerca, de frente.
Não há passado
nem há futuro.
Tudo que abarco
se faz presente.
Se me perguntam
pessoas, datas,
pequenas coisas
gratas e ingrata,
cifras e marcos
de quando e de onde,
- a minha fala
tão bem responde
que todos crêem
que estou na sala.
E ao meu sorriso
vós me sorris…
Correspondência
do paraíso
da nossa ausência
desconhecida
e tão feliz.


Cecília Meireles
in Mar Absoluto e outros poemas -1945-

Compromisso




Transportam meus ombros secular compromisso.
Vigílias do olhar não me pertencem;
trabalho dos meus braços
é sobrenatural obrigação.

Perguntam pelo mundo
olhos de antepassados;
querem, em mim, suas mãos
o inconseguido.
Ritmos de construção
enrijeceram minha juventude,
e atrasam-me na morte.
Vive! — clamam os que se foram,
ou cedo ou irrealizados.
Vive por nós! — murmuram suplicantes.

Vivo por homens e mulheres
de outras idades, de outros lugares, com outras falas.
Por infantes e velhinhos trêmulos.
Gente do mar e da terra,
suada, salgada, hirsuta.
Gente de névoa, apenas murmurada.


É como se ali na parede
estivessem a rede e os remos,
o mapa,
e lá fora crescessem uva e trigo,
e à porta se chegasse uma ovelha,
que me estivesse mirando em luar,
e perguntando-se, também.

Esperai! Sossegai!

Esta sou eu –— a inúmera.
Que tem de ser pagã como as árvores
e, como um druida, mística.
Com a vocação do mar, e com seus símbolos.
Com o entendimento tácito,
instintivo,
das raízes, das nuvens,
dos bichos e dos arroios caminheiros.

Andam arados, longe, em minh’alma.

Andam os grandes navios obstinados.

Sou minha assembléia,
noite e dia, lucidamente.

Conduzo meu povo
e a ele me entrego.
E assim nos correspondemos.

Faro do planeta e do firmamento,
bússola enamorada da eternidade,
um sentimento lancinante de horizontes,
um poder de abraçar de envolver
as coisas sofredoras,
e levá-las nos ombros como os anhos e as cruzes.

E somos um bando sonâmbulo
passeando com felicidade
por lugares sem sol nem lua.


Cecília Meireles
in Mar absoluto e outros poemas-1945-

Prazo de Vida



No meio do mundo faz frio,
faz frio no meio do mundo,
muito frio.

Mandei armar o meu navio.
Volveremos ao mar profundo,
meu navio!

No meio das águas faz frio.
Faz frio no meio das águas,
muito frio.

Marinheiro serei sombrio,
por minha provisão de mágoas.
Tão sombrio!

No meio da vida faz frio,
faz frio no meio da vida.
Muito frio.

O universo ficou vazio
porque a mão do amor foi partida
no vazio.


Cecília Meireles
in Mar absoluto e outros poemas-1945-

Auto_Retrato




Se me contemplo
tantas me vejo,
que não entendo
quem sou, no tempo
do pensamento.


Vou desprendendo
elos que tenho,
alças, enredos...

Formas, desenho
que tive, e esqueço!
Falas, desejo
e movimento
— a que tremendo,
vago segredo
ides, sem medo?!

Sombras conheço:
não lhes ordeno.
Como precedo
meu sonho inteiro,
e após me perco,
sem mais governo?!

Nem me lamento
nem esmoreço:
no meu silêncio
há esforço e gênio
e suave exemplo
de mais silêncio.

Não permaneço.
Cada momento
é meu e alheio.
Meu sangue deixo,
breve e surpreso,
em cada veio
semeado e isento.

Meu campo, afeito
à mão do vento,
é alto e sereno:
Amor. Desprezo.

Assim compreendo
o meu perfeito
acabamento.

Múltipla, venço
este tormento
do mundo eterno
que em mim carrego:
e, una, contemplo
o jogo inquieto
em que padeço.

E recupero
o meu alento
e assim vou sendo.

Ah, como dentro
de um prisioneiro
há espaço e jeito
para esse apego
a um deus supremo,
e o acerbo intento
do seu concerto
com a morte, o erro...

( voltas do tempo
— sabido e aceito —
do seu desterro...)


Cecília Meireles
in Mar absoluto e outros poemas-1945-

1º Motivo da Rosa



Vejo-te em seda e nácar,
e tão de orvalho trêmula,
que penso ver, efêmera,
toda Beleza em lágrimas
por ser bela e ser frágil.

Meus olhos te ofereço:
espelho para a face
que terás, no meu verso,
quando, depois que passes,
jamais ninguém te esqueça.

Então, de seda e nácar,
toda de orvalho trêmula,
serás eterna. E efêmero
o rosto meu, nas lágrimas
do teu orvalho... E frágil.


Cecília Meireles
in Mar absoluto e outros poemas- 1945-

Epigrama Número 1

Epigrama número 1


Pousa sobre esses espetáculos infatigáveis
uma sonora ou silenciosa canção:
flor do espírito, desinteressada e efêmera,

Por ela, os homens te conhecerão:
por ela, os tempos versáteis saberão
que o mundo ficou mais belo, ainda que inutilmente,
quando por ele andou teu coração.

Cecília Meireles
Viagem, 1938

EPIGRAMA



A serviço da Vida fui,
a serviço da Vida vim;

só meu sofrimento me instrui,
quando me recordo de mim.

(Mas toda mágoa se dilui:
permanece a Vida sem fim.)


Cecília Meireles
in Vaga Música

Ritmo



O ritmo em que gemo
doçuras e mágoas
é um dourado remo
por douradas águas.

Tudo, quando passo,
olha-me e suspira.
– Será meu compasso
que tanto os admira?


Cecília Meireles
in Vaga Música

23 de abr. de 2009

PÁSSARO


Aquilo que ontem cantava
já não canta.
Morreu de uma flor na boca:
não do espinho na garganta.

Ele amava a água sem sede,
e, em verdade,
tendo asas, fitava o tempo,
livre de necessidade.

Não foi desejo ou imprudência:
não foi nada.
E o dia toca em silêncio
a desventura causada.

Se acaso isso é desventura:
ir-se a vida
sobre uma rosa tão bela,
por uma tênue ferida.


Cecília Meireles
in Retrato Natural (1949)

MODINHA



Tuas palavras antigas
deixei-as todas, deixei-as,
junto com as minhas cantigas,
desenhadas nas areias.

Tantos sóis e tantas luas
brilharam sobre essas linhas,
das cantigas — que eram tuas —
das palavras — que eram minhas!

O mar, de língua sonora,
sabe o presente e o passado.
Canta o que é meu, vai-se embora:
que o resto é pouco e apagado.


Cecília Meireles
In: Vaga Música (1942)

CANÇÃO DO CAMINHO



Por aqui vou sem programa,
sem rumo,
sem nenhum itinerário.
O destino de quem ama
é vário,
como o trajeto do fumo.

Minha canção vai comigo.
Vai doce.
Tão sereno é seu compasso
que penso em ti, meu amigo.
— Se fosse,
em vez da canção, teu braço!

Ah! mas logo ali adiante
— tão perto! —
acaba-se a terra bela.
Para este pequeno instante,
decerto,
é melhor ir só com ela.

(Isto são coisas que digo,
que invento,
para achar a vida boa...
A canção que vai comigo
é a forma de esquecimento
do sonho sonhado à toa...)


Cecília Meireles
in: Vaga Música (1942)

BIOGRAFIA



Escreverás meu nome com todas as letras,
com todas as datas,
— e não serei eu.

Repetirás o que me ouviste,
o que leste de mim, e mostraras meu retrato,
—- e nada disso serei eu

Dirás coisas imaginárias,
invenções sutis, engenhosas teorias,
— e continuarei ausente,

Somos uma difícil unidade,
de muitos instantes mínimos,
— isso serei eu,

Mil fragmentos somos, em jogo misterioso,
aproximamo-nos e afastamo-nos, eternamente,
— Como me poderão encontrar?

Novos e antigos todos os dias,
transparentes e opacos, segundo o giro da luz,
nós mesmos nos procuramos.

E por entre as circunstâncias fluímos,
leves e livres corno a cascata pelas pedras.
— Que mortal nos poderia prender?


Cecília Meireles
in Poemas II

Solombra



Eu sou essa pessoa a quem o vento chama,
a que não se recusa a esse final convite,
em máquinas de adeus, sem tentação de volta.

Todo horizonte é um vasto sopro de incerteza:
Eu sou essa pessoa a quem o vento leva:
já de horizontes libertada, mas sozinha.

Se a Beleza sonhada é maior que a vivente,
dizei-me: não quereis ou não sabeis ser sonho ?
Eu sou essa pessoa a quem o vento rasga.

Pelos mundos do vento em meus cílios guardadas
vão as medidas que separam os abraços.
Eu sou essa pessoa a quem o vento ensina:

“Agora és livre, se ainda recordas"

Cecília Meireles
in Solombra


Que densidades, que obediência
a que ordens invencíveis?
Os ângulos se calculam,
dispõe-se a coesão,
constrói-se a transparência,
ó poliedro!


Unidade repleta de renuncias,
disciplina obscura e predestinada,
mundo cintilante de simetrias,
submersa entrega,
difícil e fácil,
resistente e súbita,
ó poliedro.


Fábula mineral com a poderosa geometria
a enfrentar as incansáveis arestas da erosão,
invisíveis, mas peremptórias.


Abril, 1963



Cecília Meireles
In: O Estudante Empírico (1959-1964)

22 de abr. de 2009

TRÊS ORQUÍDEAS



Para D. Marcos Barbosa

As orquídeas do mosteiro fitam-me com seus olhos roxos.
Elas são alvas, toda pureza,
com uma leve mácula violácea para uma pureza de sonho triste, um dia.

Que dia? que dia? dói-me a sua brevidade.
Ah! não vêem o mundo. Ah! não me vêem como eu as vejo.
Se fossem de alabastro seriam mais amadas?
Mas eu amo o terno e o efêmero e queria fazer o efêmero eterno.

As três orquídeas brancas eu sonharia que durassem,
com sua nervura humana,
seu colorido de veludo,
a graça leve do seu desenho,
o tênue caule de tão delicado verde.
Que elas não vêem o mundo, que o mundo as visse.
Quem pode deixar de sentir sua beleza?
Antecipo-me em sofrer pelo seu desaparecimento.
E apira sobre elas a gentileza igualmente frágil,
a gentileza floril
da mão que as trouxe para alegrar a minha vida.

Durai, durai, flores, como se estivésseis ainda
no jardim do mosteiro amado onde fostes colhidas,
que escrevo para perdurares em palavras,
pois desejaria que para sempre vos soubessem,
alvas, de olhos roxos (ah! cegos?)
com leves tristezas violáceas na brancura de alabastro.


Cecília Meireles
In Dispersos- (agosto de 1964)
Hospital dos Servidores do Rio de Janeiro- 3 meses antes de seu falecimento-

RETRATO



Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida
a minha face?

Cecília Meireles
in Viagem

Cânticos

Em cânticos, Cecília Meireles nos revela, na melodia de seus versos, sua sabedoria, a um só tempo suave e profunda. Suas palavras, com delicadeza, permitem um olhar diferente sobre a vida: além das frustrações e da aridez do cotidiano, da dor da passagem do tempo, da necessidade premente de amor, da presença constante da morte ... Cecília canta a beleza da renúncia:



“nada é realmente nosso, porque nada permanece. Renunciar às coisas, pode ser, então, uma alternativa à dor por aquilo que perdemos - se nada é nosso, nada pode ser realmente perdido.”


Cada poema nos desperta para o eterno que existe por trás do efêmero, para a luz que permanece a mesma, apesar da mudança das cores. Somos convidados, também, a procurar por nossa própria luz, por aquilo que em nós sobrevive às desilusões e à passagem do tempo. Cada verso nos sussurra, baixinho, a verdade daquela antiga sabedoria oriental: tudo é maya tudo é apenas ilusão.


O livro reúne vinte e seis poemas, todos eles de caráter intimista e introspectivo, alguns com mote vinculado à eternidade e à auto descoberta. Exploram a repetição de palavras e o paralelismo sintático, recursos que conferem aos poemas suave musicalidade.


A edição, ao permitir ao leitor observar os manuscritos da autora, oferece a rara oportunidade de compartilhar alguns de seus processos de produção poética, além de apreciar os delicados desenhos que vai deixando distraidamente em algumas páginas.


Nos poemas de Cânticos, Cecília Meireles utiliza o recurso da repetição de palavras ou de estruturas sintáticas que estabelecem uma relação entre a sonoridade e o conteúdo dos poemas.


Site: moderna.






No texto em prosa, ela exterioriza sua perplexidade, enquanto na poesia dos Cânticos ela parece incentivar o marido a não desistir.


Uma última tentativa aconteceu em 1934, quando Cecília Meireles foi convidada pelo governo português a fazer uma série de conferências em cidades como Lisboa e Coimbra. O convite reanimou o casal, especialmente Correia Dias, na expectativa por voltar à terra natal. "O efeito, porém, foi contrário", conta Teixeira. "Cecília foi muito festejada pelos portugueses, que não receberam com o mesmo calor seu conterrâneo.


O resultado foi trágico - de volta ao Brasil, Fernando aprofundou-se em sua crise até se matar, em 1935.



As crônicas, portanto, terminaram como um testemunho de Cecília em seu ímpeto de eternizar seu presente. Em 1939, quando fazia dez anos do início de sua colaboração ao O Jornal, a poeta decidiu recuperar seus artigos e os organizou com a disposição de editá-los em livro. Preparou até uma introdução, em que revela uma dor persistente.



"Relendo-os, verifico, dez anos depois, que ainda me comovem essas páginas. Nelas está minha vida, em toda a sua pureza, numa fase amargurada de construção. Amo essa tristeza conformada da minha disciplina", datilografou ela.



Alexandre Carlos Teixeira

(Neto da poeta em trecho da entrevista a O povo on-line)



21 de abr. de 2009


XX


Não digas que és dono.

Sempre que disseres

Roubas-te a ti mesmo.

Tu, que és senhor de tudo . . .

Deixa os escravos rugirem,

Querendo.

Inutiliza o gesto possuidor das mãos.

Sê a árvore que floresce

Que frutifica

E se dispersa no chão.

Deixa os famintos despojarem-te.

Nos teus ramos serenos

Há florações eternas

E todos as bocas se fartarão.



Cecília Meireles
In: Cânticos

XIX


Não tem mais lar o que mora em tudo.

Não há mais dádivas

Para o que não tem mãos.

Não há mundos nem caminhos

Para o que é maior que os caminhos

E os mundos.

Não há mais nada além de ti.

Porque te dispersaste . . .

Circulas em todas as vidas

Pairas sobre todas as coisas

E todos te sentem

Sentem-se como a si mesmos

E não sabem falar de ti.



Cecília Meireles
In: Cânticos

XVIII


Quando os homens na terra sofrerem

Sofrimento do corpo,

Sofrimento da alma,

Tu não sofrerás.

Quando os olhos chorarem

E as mãos se quebrarem de angústia

E a voz se acabar no rogo e na ameaça,

Quando os homens viverem,

Tu não viverás.

Quando os homens morrerem na vida,

Quando os homens nascerem na morte,

Na vida e na morte nunca mais

Nunca mais tu não morrerás.



Cecília Meireles
In: Cânticos

XVII


Perguntarão pela tua alma.

A alma que é ternura,

Bondade,

Tristeza,

Amor.

Mas tu mostrarás a curva do teu vôo

Livre, por entre os mundos . . .

E eles compreenderão que a alma pesa.

Que é um segundo corpo.

E mais amargo,

Porque não se pode mostrar,

Porque ninguém pode ver . . .



Cecília Meireles
In: Cânticos

XVI


Tu ouvirás esta linguagem,

Simples,

Serena,

Difícil.

Terás um encanto triste.

Como os que vão morrer,

Sabendo o dia . . .

Mas intimamente

Quererás esta morte,

Sentindo-a maior que a vida.



Cecília Meireles
In: Cânticos

XV


Não queiras ser.

Não ambiciones.

Não marques limites ao teu caminho.

A Eternidade é muito longa.

E dentro dela tu te moves, eterno.

Sê o que vem e o que vai.

Sem forma.

Sem termo.

Como uma grande luz difusa.

Filha de nenhum sol.



Cecília Meireles
In: Cânticos

XIV


Eles te virão oferecer o ouro da Terra.

E tu dirás que não.

A beleza.

E tu dirás que não.

O amor.

E tu dirás que não, para sempre.

Eles te oferecerão o ouro d’além da Terra.

E tu dirás sempre o mesmo.

Porque tens o segredo de tudo.

E sabes que o único bem é o teu.



Cecília Meireles
In: Cânticos

XIII


Renova-te.

Renasce em ti mesmo.

Multiplica os teus olhos, para verem mais.

Multiplica os teus braços para semeares tudo.

Destrói os olhos que tiverem visto.

Cria outros, para as visões novas.

Destrói os braços que tiverem semeado,

Para se esquecerem de colher.

Sê sempre o mesmo.

Sempre outro.

Mas sempre alto.

Sempre longe.

E dentro de tudo.



Cecília Meireles
In: Cânticos

XI


Vê formaram-se sobre todas as águas

Todas as nuvens.

Os ventos virão de todos os nortes.

Os dilúvios cairão sobre os mundos.

Tu não morrerás.

Não há nuvens que te escureçam.

Não há ventos que te desfaçam.

Não há águas que te afoguem.

Tu és a própria nuvem.

O próprio vento.

A própria chuva sem fim . . .



Cecília Meireles
In: Cânticos

X


Este é o caminho de todos que virão.

Para te louvarem.

Para não te verem.

Para te cobrirem de maldição.

Os teus braços são muito curtos.

E é larguíssimo este caminho.

Com eles não poderás impedir

Que passem, os que terão de passar,

Nem que fiques de pé,

Na mais alta montanha,

Com os teus braços em cruz.



Cecília Meireles
In: Cânticos

IX


Os teus ouvidos estão enganados.

E os teus olhos.

E as tuas mãos.

E a tua boca anda mentindo

Enganada pelos teus sentidos.

Faze silêncio no teu corpo.

E escuta-te.

Há uma verdade silenciosa dentro de ti.

A verdade sem palavras.

Que procuras inutilmente,

Há tanto tempo,

Pelo teu corpo, que enlouqueceu.



Cecília Meireles
In: Cânticos

VIII


Não digas: “o mundo é belo”.

Quando foi que viste o mundo?

Não digas: “o amor é trsite”.

Que é que tu conheces do amor?

Não digas: “a vida é rápida”.

Como foi que mediste a vida?

Não digas: “eu sofro”.

Que é que dentro de ti és tu?

Que foi que te ensinaram

Que era sofrer?



Cecília Meireles
In: Cânticos

VII


Não ames como os homens amam.

Não ames com amor.

Ama sem amor.

Ama sem querer.

Ama sem sentir.

Ama como se fosse amar.

Sem parar.

Tão separado do que ama, em ti,

Que não te inquiete

Se o amor leva à felicidade,

Se leva à morte,

Se leva a algum destino.

Se te leva.

E se vai, ele mesmo . . .



Cecília Meireles
In: Cânticos

VI


Tu tens um medo:

Acabar.

Não vês que acabas todo o dia.

Que morres no amor.

Na tristeza.

Na dúvida.

No desejo.

Que te renovas todo o dia.

No amor.

Na tristeza.

Na dúvida.

No desejo.

Que és sempre outro.

Que és sempre o mesmo.

Que morrerás por idades imensas.

Até não teres medo de morrer.

E então serás etreno.



Cecília Meireles
In: Cânticos

V


Esse teu corpo é um fardo.

É uma grande montanha abafando-te.

Não te deixando sentir o vento livre

Do Infinito.

Quebra o teu corpo em cavernas

Para dentro de ti rugir

A força livre do ar.

Destrói mis essa prisão de pedra.

Faz-te recepo.

Âmbito.

Espaço.

Amplia-te.

Sê o grande sopro

Que circula . . .



Cecília Meireles
In: Cânticos

IV


Adormece o teu corpo com a música da vida.

Encanta-te.

Esquece-te.

Tem por volúpia a dispersão.

Não queiras ser tu.

Quere ser a alma infinita de tudo.

Troca o teu curto sonho humano

Pelo sonho imortal.

O único.

Vence a miséria de ter medo.

Troca-te pelo Desconhecido.

Não vês, então, que ele é maior?

Não vês que ele não tem fim?

Não vês que ele és tu mesmo?

Tu que andas esquecido de ti?


Cecília Meireles
In: Cânticos

III


Não digas onde acaba o dia.

Onde começa a noite.

Não fales palavras vãs.

As palavras do mundo.

Não digas até onde és tu.

Não digas desde onde é Deus.

Não fales palavras vãs.

Desfaze-te da vaidade triste de falar.

Pensa, completamente silencioso,

Sem pensar.



Cecília Meireles
In: Cânticos

II


Não sejas o de hoje.

Não suspires por ontens . . .

Não queiras ser o de amanhã.

Faze-te sem limites no tempo.

Vê a tua vida em todas as origens.

Em todas as existências.

Em todas as mortes.

E sabe que serás assim para sempre.

Não queiras marcar a tua passagem.

Ela prossegue:

É a passagem que se continua.

É a tua eternidade . . .

É a eternidade.

És tu.



Cecília Meireles
In: Cânticos

Cântico



I


Não querias ter Pátria.

Não dividas a Terra.

Não dividas o Céu.

Não arranques pedaços ao mar.

Não queiras ter.

Nasce bem alto,

Que as coisas todas serão tuas.

Que alcançarás todos os horizontes.

Que o teu olhar, estando em toda parte

Te ponha em tudo,

Como Deus.



Cecília Meireles
In: Cânticos
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