25 de ago. de 2010

''Não: já não falo de ti, já não sei de saudades''


Não: já não falo de ti, já não sei de saudades.
Feche-se o coração como um livro, cheio de imagens,
de palavras adormecidas, em altas prateleiras,
até que o pó desfaça o pobre desespero sem força,
que um dia, pode ser, pareceu tão terrível.


A aranha dorme em sua teia, lá fora, entre a roseira e o muro.
Resplandecem os azulejos – é tudo quanto posso ver.
O resto é imaginado, e não coincide, e é temerário
cismar. Talvez se as pálpebras pudessem
inventar outros sonhos, não de vida...


Ah! rompem-se na noite ardentes violas,
pelo ar e pelo frio subitamente roçadas.
Por onde nascerão, nestes céus invioláveis,
nossas perguntas com suas crinas de séculos arrastando-se...
Não só de amor a noite transborda mas de terríveis
crueldades, loucuras, de homicídios mais verdadeiros.


Os homens de sangue estão nas esquinas resfolegando,
e os homens da lei sonolentos movem letras
sobre imensos papeis que eles mesmos não entendem...
Ah! que rosto amaríamos ver inclinar-se da aérea varanda?
Nem os santos podem mais nada. Talvez os anjos abstratos
da álgebra e da geometria.



Cecília Meireles
In: Poesia Completa
Dispersos (1918-1964)

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